O começo do milênio
Dez anos atrás, naquele começo de década que foi também começo de milênio, eu tinha acabado de decidir que continuaria em São Paulo. Havia me mudado para a capital do concreto no ano anterior para viver com a família de meu pai, mas ele estava retornando a Porto Alegre. Foi o coração que me convenceu a permanecer. O coração romântico, apaixonado por aquela que veio a se tornar minha amada e mãe da minha filha, mas também o coração da coragem, do desafio. Me incomodava a ideia de voltar a Porto Alegre sem ter realizado nada de relevante. Fiquei. Para pagar as contas vendi o carro, comecei a trabalhar em uma produtora multimídia e de internet, mudei para uma casinha pequena e simpática a dois quarteirões do trabalho.
A internet era cada vez mais importante na minha vida. Eu tinha a sensação de que a vivência em rede levava a modos de aprendizado, criação e sociabilidade que não tinham precedentes. Pela rede conheci outras pessoas que compartilhavam a certeza de que a internet não era só comércio, nem o mero acesso a conteúdo publicado por outras pessoas. Entendi que cada pessoa conectada à rede é também uma co-criadora, que não só acessa conteúdo (uma abstração equivocada), mas também constrói um contexto único em que interpreta e reconfigura tudo que vivencia.
Inspirado pelas conversas em listas de discussão, criei meu primeiro blog em 2001. Comecei a estudar sistemas para o compartilhamento online de ideias e referências, e esse foi meu primeiro contato com software livre. Em pouco tempo eu quase não trabalhava mais, e dedicava o dia todo a essas pesquisas. Acabei demitido da produtora, mas fiquei amigo de um dos sócios, Ike Moraes. Ele também tinha um projeto chamado Roupa Velha, elaborado com alguns amigos e tocado pelo saudoso Adilson Tavares.
Meu foco de interesses foi mudando naquela época. Acabei deixando a publicidade de lado para trabalhar numa empresa de cursos corporativos. Ali tinha um pouco (um pouquinho) mais de liberdade pra pensar em tecnologia para educação e inovação, e no tempo livre testar sistemas livres de publicação online e colaboração. Paralelamente, participava de um monte de redes abertas. Em 2002 criamos o projeto Metá:Fora, que reuniu gente interessante como Hernani Dimantas, Daniel Pádua, Paulo Bicarato, Bernardo Schepop, Dalton Martins, Charles Pilger, Tati Wells, Marcus e Paulo Colacino, TupiNambá, Marcelo Estraviz, Drica Veloso, André Passamani, Felipe Albertão, Edney Souza e mais algumas dezenas de pessoas.
Foi um ano de muita efervescência experimentando com criatividade e aprendizado distribuídos, autopublicação, economia da dádiva, apropriação crítica de tecnologias, conhecimento livre, mídia tática, mobilização em rede e diversas formas de ação para transformação social. Defendíamos que imaginar uma diferença entre "real" e "virtual" era um equívoco tremendo. Operávamos em ações pontuais mas informadas, inspirados pelo imaginário das zonas autônomas temporárias (TAZ) e de redes rizomáticas. Criamos muita coisa juntos até que o projeto foi encerrado, deixando de herança para o mundo "um wiki recheadaço" e alguns projetos que tentariam se manter de forma autônoma. O mais relevante deles foi a rede MetaReciclagem.
A MetaReciclagem foi concebida genuinamente em rede, e implementada de forma distribuída e totalmente livre. Ela começou na prática como um laboratório de recondicionamento de computadores usados destinados a projetos sociais, baseado na zona sul de São Paulo. Foi uma parceria com o Agente Cidadão, OSCIP que era a reencarnação do projeto Roupa Velha. Depois de algum tempo o foco da MetaReciclagem se tornou mais amplo. Ela se expandiu para outros lugares, em projetos independentes e autogestionados. Desde o princípio, adotamos alguns posicionamentos que à época estavam longe de ser senso comum:
- a importância central do acesso à internet como condição para transformação social profunda;
- a viabilidade do software livre como plataforma local e remota em projetos de tecnologia para a sociedade;
- o caráter cultural das redes livres conectadas, a emergência de novas formas de relacionamento social e de inovação a partir delas;
- a urgência do debate sobre lixo eletrônico e a possibilidade de reutilização criativa de hardware;
- o potencial de outras formas de acesso à internet: redes comunitárias wi-fi, dispositivos móveis, etc.
É importante enfatizar aqui: em 2002, nenhum desses tópicos era consenso entre os principais atores institucionais dos projetos de "inclusão digital". A prioridade no uso da internet era questionada pelos projetos que só promoviam o adestramento de manobristas de mouse. Diziam que os coitadinhos só precisavam aprender a operar o teclado para preencher seu currículo e conseguir um emprego, e que qualquer outro uso era supérfluo. Acreditavam que era perda de tempo a garotada ficar (antes da era do Orkut) no bate-papo do UOL. Falavam que "ninguém quer computador velho, o lugar disso é no lixo". Afirmavam que o software livre era um equívoco, porque "o mercado não vai aceitar". Essa posição, aliás, existia no mercado de TI em geral. Eu lembro da empolgação que nos tomava a cada minúscula nota sobre software livre publicada na imprensa especializada.
Eu continuo acompanhando projetos de tecnologia e inclusão digital em diversos contextos institucionais, partidários e geográficos. Tenho orgulho de dizer que influenciamos pelo menos meia dúzia de grandes projetos de tecnologia para a sociedade. Ganhamos algumas batalhas desde aquela época. Os princípios que defendíamos são hoje amplamente aceitos.
A lista de discussão da MetaReciclagem tem mais de quatrocentas pessoas. O site, mais de mil cadastros. Alguns milhares já participaram de oficinas de MetaReciclagem, de forma radicalmente descentralizada. Fomos convidados a participar de eventos em diversos lugares do mundo, de Banff (Canadá) - onde Hernani Dimantas foi palestrar - a Kuala Lumpur (Malásia), onde Dalton Martins participou de um seminário de empreendedorismo. Fomos tema de teses, dissertações e artigos acadêmicos. Inspiramos dezenas de projetos. E a rede continua pulsante, o que me deixa feliz todo dia.
Uma Cultura Digital
Em termos de compreensão sobre o papel das novas tecnologias de informação e comunicação, o momento agora é outro. Não precisamos mais convencer as pessoas sobre a importância da internet. Das redes sociais. Do software livre. Boa parte dos figurões do mundo político, de todos os partidos, tem pelo menos um blog, usa o twitter e tem canal no facebook. Começamos a nova década em um patamar muito mais alto. A internet é entendida como recurso fundamental para uma cidadania plena. Existem iniciativas como o Plano Nacional de Banda Larga, o programa Computador Para Todos, o Um Computador por Aluno. A maioria dos estados tem projetos de inclusão digital com software livre. Já existem mais telefones celulares do que habitantes no Brasil. Pessoas que tinham aversão aos computadores são hoje os mais entusiásticos usuários das redes sociais. Os internautas brasileiros são os que usam a rede por mais tempo a cada mês, em comparação com outros países.
Tivemos por seis anos um Ministro da Cultura que declarou-se hacker e fomentou o desenvolvimento de uma série de projetos baseados em uma Ecologia Digital (José Murilo, que tornou-se o coordenador de cultura digital no Ministério, escreve há anos sobre o assunto). Os primeiros anos da ação cultura digital nos Pontos de Cultura, implementada por integrantes de diversas redes e coletivos independentes e orquestrada por Claudio Prado , foram um capítulo importante na construção de uma compreensão brasileira das tecnologias livres como expressão cultural legítima e extremamente fértil. Alguns dos princípios colocados naquele projeto - descentralização integrada, autonomia, identificação de catalisadores locais para replicação das redes, incentivo a uma ecologia de publicação de conteúdos livres, educação sobre ferramentas livres de produção multimídia - foram de uma inovação profunda para o mundo institucional, mesmo que - por conta do descompasso entre a velocidade necessária e a precariedade de condições de implementação - nunca tenham chegado a se desenvolver plenamente.
O Ministério precisaria de uma equipe muito maior do que é viável para gerenciar e acompanhar satisfatoriamente essa multiplicidade de contextos. Os Pontos também acabam ficando dependentes das verbas de uma só fonte (verbas que por sinal nunca chegam na data prevista), e não trabalham com o horizonte de autonomia efetiva de recursos. É necessário avançar, e muito, nas questões da autogestão da rede de Pontos; dos arranjos econômicos locais; do seu impacto social, econômico e ambiental. Mas eles continuam sendo umas das experiências mais transformadoras realizadas pelo governo que se encerrou dezembro passado. Estamos esperando que a nova gestão trate de ampliar, profissionalizar e aprofundar essa experiência.
Livre?
Uma questão que ficou em aberto no meio do caminho está ligada à qualidade do engajamento em ecologias abertas e livres. O Brasil tem se tornado de fato um grande usuário, mas estamos lá atrás no que toca ao desenvolvimento propriamente dito de software livre. De certa forma, é uma relação parasitária: estamos nos utilizando de software disponibilizado livremente, mas não estamos em retorno contribuindo com esse banco aberto de conhecimento aplicado. Não é uma situação tão desequilibrada que inviabilize o sistema como um todo (a tragédia do comum não se transfere totalmente para o contexto digital), mas investir de forma mais pesada no desenvolvimento de software livre seria a atitude coerente com o discurso que estamos adotando. O conhecimento livre é muito mais profundo do que a mera distribuição gratuita. Ele engendra uma economia aberta, distribuída e descentralizada. E precisa de investimento que assegure o funcionamento dessa economia.
Os novos governos federal e estaduais que assumiram nesse momento de referenciais avançados em relação a oito anos atrás precisam entender o potencial e a importância de adotarem alguns princípios claros. O apoio à liberdade de circulação da informação (e a publicação de dados oficiais abertos, como tem defendido a Transparência Hacker), o fomento à emergência de soluções livres e à descentralização integrada, a orientação sobre a sustentabilidade socio-economico-ambiental da produção criativa em rede e a escolha intransigente de protocolos abertos e livres são necessários em todas as áreas do conhecimento. Precisamos compreender que o acesso à informação não basta - precisamos é de participação, cotidianos compartilhados e aprendizado em rede. O estímulo à inovação aberta baseada nesses princípios pode promover saltos quantitativos no alcance de iniciativas das comunicações, diplomacia, educação, cidades, segurança, defesa civil, saúde, meio ambiente, transporte, turismo, direitos humanos, ciência e tecnologia, e por aí vai.