Redes

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Nos últimos dias tenho folheado de maneira descompromissada algumas publicações que recebi recentemente da Holanda: Organized Networks, de Ned Rossiter; From Weak Ties to Organised Networks, publicação pós-Wintercamp (que já comentei por cima aqui); e a caixa e-culture, uma caixa com um DVD, um folheto e três livros. Não foi de propósito, mas isso me pegou no meio do planejamento e primeiras conversas relacionadas à aplicação dos recursos do Prêmio de Mídia Livre que a MetaReciclagem levou, e acabei estendendo alguns insights a essa busca mais prática.
Enquanto busca de identidade de rede, a MetaReciclagem já passou por um monte de fases. Desde o começo como um subgrupo do projeto metáfora, passando pela dissolução influenciando grandes projetos de governo, até a fase atual em que muitas vezes parece que a potência de articulação e colaboração se esgotou, até que aparece vida em um canto esquecido, até que alguém volta a se movimentar naquele espaço simbólico depois de alguns anos em silêncio, até que os olhares e afinidades se reencontram em novas buscas. Acho que em todas essas fases, a única constante é a incerteza sobre o que vem a seguir. Daí que quando eu pego alguns desses estudos de matriz europeia, chega a me incomodar a sensação de que estão tentando enquadrar uma classe de fenômeno que não se presta muito a classificações e determinações.
Quando Rossiter sugere que é necessário que se criem novas formas institucionais que dêem conta do tipo de interação que as redes tornam possível, ele o faz baseado na perspectiva de uma sociedade que já foi concreta e estável e que em determinado momento passou a se liquefazer, a perder os limites e as estruturas. Como se o agora fosse um momento intermediário, em que se estabelecem as bases de uma sociedade que vai voltar a ser estável, segura e previsível (posso estar enganado, o livro dele é o que estou avançando mais devagar).
Essa visão influencia até mesmo o tipo de questionamento que o Wintercamp fazia a todas as redes que reuniu. Compartilhei com outras pessoas a sensação de que as perguntas não se aplicavam às práticas que estávamos debatendo no espaço da rede Bricolabs (comentei um pouco mais sobre isso nos meus posts sobre o evento). Talvez seja necessário relativizar as perspectivas: em vez de partir de um mundo europeu ocidental que se caotizou, partir de um mundo mais amplo, que sempre foi inclassificável e inordenado, no qual por algum tempo e em algumas localidades específicas existiu uma ilusão de ordem.
Há alguns dias, eu bloguei sobre alguns contrastes que senti em sampa depois de um fim de semana em Porto Alegre. Acho que faltou complementar a reflexão com o que eu sinto aqui em Ubatuba. Casas térreas, ainda muita rua de terra, muita loja de material de construção, muita obra incompleta, muita terra pra vender. Mais do que uma urbanização ainda não realizada, eu penso mais em termos de fronteira, de um limiar entre tipos diferentes de espaço, realidades potenciais que compartilham a coordenada geográfica. Como se ao atravessar a rua eu também estivesse atravessando o rio que poderia ainda existir ou a estrada ou ferrovia que poderia ter sido construída.
Inverter a perspectiva do desenvolvimento é pensar que esse cenário de Ubatuba é tão contemporâneo quanto a Potsdamer Platz em Berlim. Mais do que isso, faz parte de um cenário complexo em que o caos sonoro que escuto no quarteirão nesse exato momento - jazz, rock, igreja evangélica, funk carioca, todos no volume máximo, coexiste com a frieza pretensiosa da Avenida Paulista, que fica a menos de 250km daqui.
Como essas coisas se relacionam daqui para a frente, é uma coisa interessante a se pensar. Mas acho que estar nesse ambiente diverso contribui bastante para a compreensão de rede que a gente acaba adotando aqui no Brasil. Outra coisa que eu depreendo de alguns desses textos de fora é a noção de que a rede é uma coisa que não faz parte da vida cotidiana: as pessoas têm seu trabalho, sua família, seus amigos, e além de tudo isso - em uma dimensão paralela - participam de redes. É uma visão que sempre me pareceu equivocada, mas talvez nisso eu revele minha própria perspectiva: de que redes sempre fizeram parte da existência humana e do cotidiano.
Em outras palavras, acho que eu estou mais uma vez afirmando que um mundo sem redes, se é que existiu, foi uma distorção específica de uma época e de alguns locais, talvez daqueles contextos que quiseram acreditar que as instituições democráticas vinham para eliminar de uma vez por todas com a necessidade de arranjos informais diretos entre as pessoas, quase como uma objetivação da da vida em sociedade: você não precisa desenvolver a habilidade de se relacionar em redes, porque as instituições vão te oferecer ferramentas estatisticamente comprovadas para isso. Se não faz sentido em democracias estabelecidas (já hoje, figuras que eram democratas efusivas questionam se a representatividade estatística ainda vale em tempos de grande imigração para os países ricos), me parece que faz menos sentido ainda em democracias vacilantes como a nossa (alguém acredita em voto obrigatório?).
Nisso tudo, acabo caindo de novo na imagem do poder para-constituido, que comentei uma vez em uma mensagem na lista de discussão da MetaReciclagem: em vez de pensar que as redes são um cenário pré-constituído e as organizações um cenário pós-constituído (caso em que a constituição de uma organização seria um divisor de águas), é melhor pensar na coexistência, em rede, de atores que estão constituídos com cenários que não se constituem (e nem pretendem se constituir).
Já passamos o século XX, a era da indústria e das marcas, em que as coisas eram classificadas e rotuladas de maneira visível e consistente. Se o mundo do dinheiro já entendeu isso, não podemos perder tempo (nós que acreditamos em outrxs deusxs além da nota de cem) com o atrito causado pela tentativa de usar regras antigas de convivência entre multiplicidades pessoais, identidades coletivas e as limitações burocráticas.
Gosto de pensar que a MetaReciclagem, de alguma forma, e com toda a dispersão que tem, oferece um exemplo (mas nenhuma fórmula) desse tipo de convívio complexo, tenso, mas em última instância ainda produtivo e feliz. Talvez uma das bases seja justamente que as pessoas só colaboram se quiserem: não existe coerção, e até por conta da distância a pressão que se pode exercer sobre as decisões nas pontas é menor do que seria em um contexto mais estruturado.
Essa questão da permeabilidade da rede também foi uma referência interessante de um dos textos da caixa e-culture (que falei lá no comecinho desse post que tá saindo mais longo do que eu imaginava), relacionando a idéia de walled garden (jardim cercado) com o convívio em rede. Juntando esse tipo de reflexão com a necessidade concreta de definir caminhos para o desenvolvimento do site, mandei uma mensagem pra lista articulando essas referências com algumas idéias do Bauman que andavam circulando por lá, tratando das figuras do caçador e do jardineiro.
Jardinagem foi um termo que a gente adotou dos wikis e acabou usando bastante ao longo desses anos, mas talvez seja hora de misturar com a perspectiva da permacultura, que em essência tem mais a ver com o ideário da MetaReciclagem: reuso, apropriação, invenção com os elementos que estão à mão, etc. Há algumas semanas fui visitar aqui em Ubatuba o IPEMA, e por mais que eu já conhecesse grande parte das coisas que eles fizeram por ali, é sempre bom ver que aquela conversa de estimular um tipo de sensibilidade que faça as pessoas trocarem o comprar pelo fazer, de preferência com materiais reaproveitados, também ecoa em outras áreas do conhecimento.