O reveillon das muitas barreiras - parte I

O reveillon das muitas barreiras
ou
causo sobre a expectativa de retorno à rotina e aos planos
ou
saindo da rotina - e querendo voltar

Pela primeira vez em muitos anos, o grupo não passaria a noite de reveillon na roça. Reservamos uma mesa para quinze no restaurante Quebra Cangalha, quase na saída de Cunha. Nos encontraríamos no sítio nos dias anteriores, e iríamos todos juntos à cidade na noite de 31 de dezembro de 2009.

Sabíamos que nos esperava um ano intenso. Também sabíamos que a chuva caía forte e traria algum transtorno. A semana já havia avisado. Alguns dias antes, o Mauro precisou esperar o rio baixar em uma ponte, depois outra e mais uma. Chegou ao sítio com algumas horas de atraso. O comentário era que desde 1985 - o ano do Rock in Rio - não acontecia algo parecido. Sabendo disso, nossa saída para o reveillon na cidade contaria com alguns cuidados especiais - para percorrer os dez quilômetros de estrada de terra e outros dez de asfalto em quatro carros, levaríamos casacos impermeáveis, rádios de comunicação, duas cordas grandes e duas lanternas. A roupa de festa seria vestida depois que chegássemos a Cunha. Na ausência de galochas propriamente ditas, calcei as botas de neve que comprei em liquidação no dia mais quente do verão na Alemanha - 34 graus em uma cidade da Saxônia, ainda mais insuportáveis quando precisei provar o tamanho das botas. Também tomei o cuidado de deixar o celular carregado.

Durante a tarde do dia 31, a chuva descia suave. Ao contrário do episódio anterior, quando o rio transbordou cedo e foi esvaziando, o fim da tarde veio e o nível do rio ainda não chegara à ponte. Encaramos como um bom sinal - a chuva devia parar logo, e o nível do rio voltaria ao normal - e saímos. Na estrada de terra, patinamos um pouco, mas nada de mais. Ao chegar no centro de Cunha, a chuva caía mais forte. Encontramos a Fê, que havia vindo de São Paulo. Ainda era cedo - matamos um pouco de tempo na Doceria da Cidinha e depois bebendo Wolkenburg no Café & Arte. Passadas as nove horas, nos armamos de guarda-chuvas e armamos a logística para buscar os carros e rumar ao Quebra Cangalha, para ocupar nossa mesa de 15 pessoas. A água apertava.

O jantar transcorreu bem, mas não consegui deixar de perceber pela janela às minhas costas que a chuva ficava cada vez mais forte. Pouco depois das badaladas do ano novo, estouro de espumantes, brindes e telefonemas, decidimos que não podíamos perder muito tempo para voltar. Chovia tanto que nem conseguimos assistir aos fogos na cidade, a poucos quilômetros dali. Tomamos a Cunha-Parati. No caminho até a estrada de terra para o bairro da Barra, passamos por duas quedas de barreiras - "barreira" era uma palavra que nas próximas 24 horas entraria de vez no meu vocabulário. O trânsito estava em meia-pista, mas conseguimos passar, cada vez mais cautelosos.

Depois de menos de um quilômetro de estrada de terra, passamos por uma Kombi branca cheia de gente, parada. Poucos metros adiante, nosso primeiro carro parou de repente. Um rio atravessava a estrada. Ricardo puxou sua lanterna-holofote e apontou para a frente. Um SUV, talvez uma Pajero TR,4 estava lá no meio, cercada de água por todos os lados. Não sairia tão fácil. Pelo menos não havia sinais de pessoas dentro dela. Na hora, me lembrei da conversa que tive com a Thalita - se acontecesse de novo o que o Mauro havia passado na semana anterior, o que fazer? Minha resposta foi rápida - vou direto esperar na pousada mais próxima, talvez a dos Anjos. Ela comentou que a Moara também era uma boa. Chegamos a uma situação parecida, o que faríamos? Confabulamos, e decidimos voltar ao restaurante - em último caso, ficaríamos por lá até eles fecharem as portas. Pelo menos, era seco e teria comida e banheiros.

De volta à Cunha-Parati sentido cidade, passamos de novo por uma das barreiras que havíamos cruzado antes. Alguns quilômetros depois, outra barreira - e uma das grandes! A pista estava totalmente tomada por barro & árvores. Carros parados do outro lado, e a sensação de que não passaríamos. A barreira tinha caído nos vinte minutos anteriores - tínhamos passado por ali na ida, sem problemas. Sinalizamos para o carro que estava na frente - Fê e Thyago - que fizesse o retorno o mais rápido possível. O barranco parecia ainda não haver terminado de cair. Precisávamos de outro refúgio para escapar da chuva até que a estrada de terra para nosso canto estivesse liberada.

Decidimos tentar a última pousada antes da saída do asfalto: alguns de nós já conheciam os donos atuais da Pousada dos Anjos, e também a dona anterior, que montou o espaço e o manteve até perder o filho, há alguns anos. Fica à beira da Parati-Cunha, km 58. Um carro foi na frente para conversar - afinal, estávamos em quinze. Fomos recebidos muito bem pela Katia e pelo Marcos: tinham organizado ali mesmo uma festa junto com o pessoal do restaurante Drão - eu tinha lido sobre isso num cartaz na Cidinha, algumas horas antes, sem dar a devida atenção. O pessoal da pousada avisou que não teriam bebidas para todos, mas nos ofereceram teto para escapar da chuva, banheiros e algum conforto em cadeiras ou onde conseguíssemos nos encostar. Todos os quartos estavam lotados.

Aceitamos o que o destino ofereceu, e fomos aproveitar a festa. Ainda tínhamos guardado uma garrafa de espumante, que foi prontamente aberta e servida. Curtimos as duas últimas músicas da excelente banda que se apresentava. Depois dançamos, conversamos, conhecemos pessoas, imprecamos contra a chuva. Como ela não cedesse, depois das quatro da manhã o pessoal começou a procurar cantos para fechar os olhos. Alguns alinharam cadeiras para fazer as vezes de camas; outrxs encontraram poltronas mais confortáveis espalhadas pelo salão. Aninha, que não se sentia bem, foi eleita merecedora de uma confortável cadeira de pano. Ainda demovi a Su de uma tentativa de descer a estrada de terra, acompanhando o pessoal que tinha uma Ranger. Não teria dado certo.

Eu e Carol para o Uno e reclinamos os bancos ao máximo. Me senti grato pela neurose de manter no carro o cobertor vermelho roubado em um voo da TAP. Minhas botas, espaçosas, disputavam espaço com os pedais do carro. De alguma forma, meus pés estavam molhados dentro delas - depois de muito subir e descer do salão até os carros, ajudando as pessoas ou levando e trazendo coisas, alguma água havia passado das pernas às meias. Também sentia água nas costas, dos poucos segundos em que tirei a jaqueta impermeável antes de entrar no carro - não queria molhar o banco. Abrimos pequenas frestas nas quatro janelas, para os vidros não embaçarem demais. Ainda pendurei a jaqueta por dentro da janela para amenizar um poste de luz que apontava para dentro. Olhando para toda aquela chuva escorrendo pelo pára-brisa, percebendo outra vez o cobertor, o rádio de comunicação, a jaqueta molhada, e pensando em barcos, kits de sobrevivência e autonomia, me permiti adormecer quando a claridade do sol já começava a se esgueirar através das nuvens acinzentadas. Ouvindo o batucar amplificado das gotas no teto do carro, senti feliz o toque da mão da minha companheira de vida e musa.

Acordamos por volta das nove. A chuva continuava a cair, em ritmo constante. Michael conversava com seu Nino, um caipira da região vestido com chapéu e uma longa capa de chuva. Segundo ele, depois que a chuva parasse, ainda seriam necessárias algumas horas até a água baixar e podermos voltar à Barra. Entreouvimos que, se a situação não mudasse, a pousada não teria comida suficiente para a população crescente - além do nosso grupo, mais algumas pessoas haviam ficado por lá, além da banda que não conseguiu ir embora, e de mais alguns visitantes involuntários que chegaram pela manhã, sem outro destino possível. Mas multiplicaram os pães servindo fatias torradas, acompanhadas de manteiga, queijo e requeijão de prato. Sandra ofereceu a mistura de Chai que tinha comprado no Café & Arte na noite anterior - excelente para esquentar. Fomos nos reencontrando - todxs com cara amassada. O dono da pousada tinha até trazido casacos para o pessoal durante a madrugada. Ricardo e Michael conversavam sobre autonomia, geradores elétricos, redes alternativas de energia. A pousada também preparou garrafas de café para todxs. Som rolando de novo, conversas. Não pude deixar de lembrar da Taberna no Fim do Mundo, do Neil Gaiman.

Em algum momento da manhã, a energia acabou. Logo, estávamos apagando velas, economizando para uma eventual noite sem energia. Usar o banheiro ficou mais complicado no escuro. A pousada também dependia de bomba para encher a caixa d'água, então era necessário economizar na descarga. A chuva não dava sinais de parar - até reduzia em alguns momentos, mas depois voltava com carga total. Alguém trouxe cartas e dominó. Mais uma família de refugiados da chuva chegando - tinha saído da casa de alguns amigos logo pela manhã, mas ficaram presos na estrada. Pessoal que tinha dormido nos sofás veio oferecer as vagas para quem precisasse. Cooperação rolando muito bem. A gente tentava fazer o tempo passar. Alguns voltavam aos carros para tentar dormir mais um pouco. Eu tirei as meias encharcadas e as pendurei para secar.

A volta da energia recebeu uma salva de palmas, assovios e comemorações. Aproveitamos que o telefone da pousada funcionaria de novo - estávamos fora da área de cobertura de qualquer operadora móvel - e ligamos para o telefone público perto do sítio. A situação não era boa - não havia como atravessar o rio, uma das pontes havia sumido. Um dos últimos chegados à pousada contou que havia ligado para a Dersa, que tinha se comprometido a acionar tratores para liberar pelo menos a pista até Cunha.

Algum tempo mais tarde, eu estava fora da pousada conversando com seu Nino e Thalita, e escutamos um motor de carro. Pensamos que era mais algum visitante que chegava em busca de abrigo, mas ninguém apareceu na pousada. Mais um motor passando rápido, e ainda outro. Pegamos guarda-chuva e capas, e descemos a caminho da estrada. No caminho, vimos que a pequena queda d'água na entrada tinha virado uma cachoeira. Na pista, um fusca descia acelerado. Sinalizamos para que ele parasse. O vidro abriu lentamente. O caipira que dirigia não parecia entender se queríamos carona ou informação. Nos contou que a estrada até Cunha tinha sido liberada. Uma picape também parou para ver se precisávamos de ajuda, mas já estávamos correndo de volta para a pousada. Contamos a notícia para todos, e juntamos nosso grupo para conversar sobre o que faríamos. Não havia condições de ir embora - tínhamos muita coisa no sítio, incluindo seis cachorros presos dentro de casa. Além disso, não havia saída de Cunha - a estrada estava liberada só até a cidade, mas de lá não havia como ir a Guaratinguetá ou lugar algum.

Decidimos que um carro iria a Cunha para comprar mantimentos para nós e para a pousada. Fomos eu e Michael na Saveiro dele. Muitas barreiras caídas na estrada, algumas delas assustadoras. O acesso à pousada Moara havia virado um lago. Mais para a frente, um campo de futebol agora se prestava mais a pólo aquático. Chegamos na cidade com a missão de resolver o que pudéssemos no menor tempo possível. Compramos 70 pães, biscoitos de polvilho, queijo, água, aveia, refrigerante, pasta de dente e 15 escovas, papel higiênico, laranjas, maçãs e bananas, entre outras coisas. Não consegui comprar meias secas, meu objeto de desejo àquela hora. Na farmácia, ficamos sabendo que havia acontecido um soterramento na Barra, estrada que leva ao nosso sítio. No mercado, soubemos que havia vítimas. Telefonamos para Sampa, para resolver algumas coisas e avisar às famílias que estávamos bem. Acho que também tuitei alguma coisa.

Abastecemos o carro, tomamos a estrada de novo, e... mais uma barreira caída, atravessando as duas pistas. Michael reconheceu, do outro lado da barreira, o presidente da Câmara de Cunha, e saiu para conversar com ele. Neto vestia uma capa de chuva e empunhava um telefone. Contou que já havia acionado um trator que viria logo para limpar a barreira. Foi dele que soubemos mais sobre o desastre que tinha acontecido na estrada da Barra: a casa do Manolo tinha sido soterrada na madrugada, e a equipe de resgate não estava conseguindo chegar por causa das péssimas condições da estrada. Os vizinhos estavam se organizando para procurar as pessoas, com resultados desanimadores. Eu não conhecia a família, mas o choque da notícia foi forte. Fiquei triste. De repente, o que parecia ser só uma série de contratempos - algum tipo de comédia aventuresca levemente cínica - assumia uma gravidade maior. Agora havia vítimas, e vítimas com nomes. Michael conhecia o pessoal - eram os padrinhos de casamento da Dita e do Zé Russo - e também acusou o golpe.

O trator chegou e a barreira foi liberada. Seguimos com cautela até a pousada - contamos quinze barreiras caídas. Chegando lá, um belo almoço havia sido servido. A chuva ficava mais calma. Pouco depois, decidimos fazer uma tentativa de descer até a Barra. Deixaríamos um dos carros ali na pousada. Dividimos as compras e partimos.

(esse relato continua aqui, contando sobre a descida a pé até a Barra...)

Atualizando: esqueci um detalhe que pode ser importante, ou não - no dia que o Mauro demorou para chegar, a gente percebeu que havia alguma coisa errada quando perguntamos sobre a estrada e o Jamil contou que o ônibus (o único que liga o centro à Barra) ainda não tinha voltado - estava atrasado em duas horas.