Esse artigo foi publicado na revista eletrônica ComCiência, em junho de 2004.
O software livre já é uma opção pertinente para o usuário médio, ou seja, aquelas pessoas que utilizam um ambiente gráfico, cliente de email, player MP3, gravador de CD, descompactador de arquivos e aplicativos de escritório. Existe substituto à altura para grande parte do software proprietário necessário para quase todas essas tarefas realizadas cotidianamente. Para falar a verdade, em alguns casos o software livre supera as opções proprietárias em muitos, caso do navegador Firefox, entre tantos outros exemplos. Esse contexto é potencialmente revolucionário: qualquer pessoa pode hoje usar efetivamente um computador sem contribuir com as remessas de lucros enviadas anualmente para o exterior e evitando também a alternativa mais comum: o uso de software pirata. Isso tem impacto direto nas iniciativas públicas de universalização do acesso à tecnologia, como podem atestar os milhares de usuários dos telecentros de São Paulo.
A flexibilidade do software livre também é solo fértil para inovação. Com base no GNU/Linux e em soluções abertas, temos feito no MetaReciclagem algumas coisas que seriam impossíveis em software proprietário, não necessariamente pelo custo, mas pela impossibilidade de otimizar o código: um telecentro com 15 estações Pentium 100 Mhz diskless rodando em um servidor que é pouco mais potente do que um desktop doméstico; um videowall interativo com nove monitores, rodando em um servidor e duas estações, todos Pentium MMX 200 Mhz, com não mais do que 40Mb de RAM, e outras brincadeiras. Não são coisas simples de executar. Dalton Martins e nossa equipe de técnicos insanos passaram horas pesquisando essas e outras soluções. Mas os resultados aparecem, principalmente pelo empenho deles em fazer acontecer, e por podermos contar com conhecimento livre, o que expande nosso universo de colaboradores dos pouco mais de dez que estão diretamente envolvidos com o MetaReciclagem para os milhares que já aprimoraram algum pedaço de código. Nós nos valemos da força colaborativa do software livre para alavancar nossa própria criatividade.
Temos trabalhado com algumas iniciativas voltadas para o que pode ser chamado de Mídia Tática: o uso de ferramentas de comunicação em prol de movimentos sociais. Brigamos algumas vezes pelo uso de software livre nesses projetos: já chegamos a ponto de quase ter que forçar um projeto a adotar software livre. Apesar de haver uma grande coerência entre um esforço para a socialização do uso das mídias e o exemplo de criação colaborativa que é o software livre, sempre acabo sentindo uma certa resistência. Muitos dizem que não existe software para produção midiática. Isso é um engano tremendo. Gosto de mostrar o Dyne:bolic para essas pessoas. Alguns, um pouco mais informados, dizem que até existe, mas não dá pra confiar. Outro erro. Afirmam isso aqueles que nunca chegaram a testar o software livre. Poucos são os que realmente saíram da zona de conforto e efetivamente testaram. Esses, sim, podem reclamar, e concordo totalmente com o que eles costumam dizer: a interface dos softwares de produção em multimídia é muito menos intuitiva do que daqueles que são utilizados em ambiente profissional, a instalação é muito complexa, há dificuldades para adequar o material a padrões de mercado (separação de cores para gráfica, ou codecs de vídeo, por exemplo).
Acontece que não há maneira de surgir de repente o aplicativo ideal. A maioria dos "artivistas", como alguns deles gostam de ser chamados, tem um verdadeiro fetiche pela ferramenta perfeita. Justamente por isso, não saem da zona de conforto para testar soluções livres. Se os maiores interessados não se prontificam a testar e aprimorar o software, quem vai fazer isso? Essa é a mudança de paradigma. Não existe, como é o caso no software proprietário, uma empresa interessada em desenvolver o melhor para colher mais lucros.
Os casos de sucesso no desenvolvimento aberto foram aqueles em que os usuários eram os próprios desenvolvedores, ou então aqueles em que os usuários se dispunham a uma interação aprofundada com os desenvolvedores, frequentemente sendo questionados sobre cada uma das funcionalidades que queriam. Acontece que a grande maioria dos "artivistas" - com honrosas exceções, deixo claro - não se dispõem a tais sacrifícios. Deve ser algo prejudicial à imagem deles serem vistos conversando com geeks (alguém que gosta de tecnologia). Além disso, é bem mais fácil comprar um CD pirata em qualquer camelô por aí e instalar ao invés de perder duas horas explicando para um magrelo de óculos porque é que tem que ter um preview de efeitos de vídeo, não é mesmo? Alguns deles até se sentem orgulhosos de usar CDs piratas. Propagam que estão subvertendo o sistema. Pura ilusão. Fazer vista grossa às cópias para uso pessoal e depois cobrar pelo uso empresarial é uma das estratégias mais conhecidas de conversão de usuários e manipulação do mercado de software.
Usar software pirata, no momento em que estamos, só tem uma justificativa plausível: preguiça.
Até aí, tudo bem, um dos impulsos naturais do ser humano. Mas não é só isso. Se é o caso de um artista isolado usando software pirata para editar os vídeos captados na sua câmera comprada na última visita a Nova Iorque, eu não tenho o direito de reclamar muito. A vida é dele, se quer continuar a ser escravo de luxo de multinacionais desde que possa afirmar que está subvertendo o sistema, que fique à vontade. Mas se estamos falando de projetos de cunho social que tratam da capacitação de comunidades periféricas para o uso de mídia e replicação de estruturas de mídia alternativa (uma das possíveis extensões para a chamada terceira onda da inclusão digital), usar software proprietário é uma obscenidade. Por trás de toda a aura de responsabilidade social e mídia de protesto, esses artivistas estão agindo como propagandistas da indústria do software, criando mais e mais gerações de dependentes da ferramenta padrão de cada área, que vão precisar recorrer ao pirata se quiserem fazer um estúdio amador de áudio, por exemplo.
Como mudar essa situação? Bom, já ficou claro que o Brasil tem uma efervescência na produção de software livre. Talvez o pessoal de produção de mídia tenha que sair um pouco do comodismo e procurar essa moçada que, a cada dia inventa novas maneiras de fazer as máquinas conversarem. Isso é muito diferente de mandar uma cartinha para o SAC de um fabricante de software dizendo o que você quer na próxima versão do produto. O processo é tratar a tecnologia como artesanato. E rever todos os conceitos que você tem sobre o que é necessário para trabalhar com mídia. Garanto que é um processo criativo sensacional, embora não garanta maior reputação no clubinho hype da semana. O software livre continua se movimentando por aí, eventos pipocam para todos os lados. Acho que é o momento de aproveitar e recrutar alguns bons desenvolvedores para ajudar a migrar a produção de mídia também para software livre. Quem está comigo nessa?