Em trânsito - 2

Das anotações perdidas no meu computador

Cheguei até a dormir uns dez minutos no avião de Muenchen pra Dresden. No avião, um alemão de cavanhaque e todos mais imberbes. Dois instrumentos musicais além do meu mini-violão. Na saída do desembarque, pediram pra passar minha mala no Raio X. O que é isso, herr Fonseca? Uma barra de exercício, daquelas de pôr na porta, senhora alemã. Ah, sim, pode passar. Minha dama esperava ansiosa do outro lado da cancela. Melhor sensação do último mês foi revê-la e abraçá-la bem forte. Pela quantidade de bagagem que eu consegui levar - mochila do laptop, bolsa paranóia, mini-violão, duas malas com mais de 33 kg - tomamos um taxi. Não liga que o apartamento ainda tá vazio, peguei a chave ontem, só deixei minhas coisas lá, ainda tem que ver tudo panobaldevassouraxícara uscambau. Ligo não linda, trouxe até colhergarfofacatoalhademesa, tô sabendo. Cidade alemã, cidade alemã, cidade alemã e patchacans, chega em Neustadt (fala aí brasil: nói-xtat), bairro notoriamente boêmio, apesar de que aqui é saxônia, a bohemia é logo ali perto de Praga, que continua com a taça de melhor cerveja. Pichaçãopichaçãopichação loja de panque loja THC headshop loja de tatoo biergarten biergarten opa, chegamos em casa. Fim de semana tem festa na rua, agora tô escrevendo sem internet então provavelmente vou errar, mas acho que é a Bunte Republik Neustadt - parece que logo na queda do muro uma malucagem daqui se juntou pra fazer uam república autônoma e auto-organizada, que não perdurou, mas fazem uma festa todo ano pra relembrar. Nem sei se é essa a festa do fim de semana, mas se for tô feliz. Amigavéiadeamigadeparentedeprincesa falou que é perigoso sair de casa durante essa festa que vai rolar, então devem ser o lugarhora certos. Dasein, diz o outro lá sobre a lingualemã. Ondeuli mesmo? Não trouxe meus Borges. Tem pelo menos três com o Dalton. Borges, burgo, burgh. Borges é burguês, falou o próprio pra justificar a pressão dos comunas. E comunas nostálgicos é coisa que sencontra nessa cidadeaqui. E carajo, também nasis (grafia alterada pra não me guglarem nesse assunto, táligá?). Diz o boato que conseguiram representatividade política oficial em eleição e até reuniram 5 mil na rua no dia de lembrar o bombardeio inglêsamericano que destruiu as melhores coisas da cidade, que até hoje estão sendo reconstruídas. E aí dê-lhe polícia pra evitar conflito aberto entre nasis e panques. Tem uma tensão e uma seriedade aqui que me faz pensar no bigodudo, que estudou em Leipzig, que é aqui do lado, e chutou o balde na cabeça de gente que se leva demais a sério. Ainda corremos pra dar uma voltarelâmpago pelo centro velho, mas logo estávamos em casa. Banhodiferente armáriodiferente camadiferente. Acordei de manhã com jetlag lembrando de Cayce Pollard ou seilá como escreve. Vamo pro centro e essa cidade é uma coisa doida do lado de lá do rio. Antiga pacas e véi, muito trabalho em detalhes praquela aparência afrescada que só aqui que tem. A tal da sensação de sublime, de carajo como é que foi bichogente que construiu isso?! Cada parede é um mural em si, esculpida em detalhes. Principalmente dentro do Zwinger, uma praça cercada que se hoje tá cheia de turista tirando foto sem ver, um dia foi o canto de balada do August der Starke, Guto o Forte, um rei que deu a forma da cidade. Por todos os lados no Zwinger, referências a bacodioniso, sátiros e pandeiros.
Aí passei pra administração local pra comprovar moradia, foi fácil. E no impulso fui no departamento destrangeiros. Putamerda, é O lugar pra ser maltratado aqui. Feladaputa. Fila cheia, corredor cheio de estranjas, atendimento em salinhas fechadas - não dá pra ver quantas pessoas trampam ou como é o tratamento. Entra na sala depois de meia hora segurando uma senha, e a mulher só fala alemão e reclama e pede mais documentos e tal. Fui embora com um formulário, cansaço e uma deprê grande. Tenho que voltar, mas levo comigo um alemão velho e grande pra me ajudar, que é foda. Imagino quem não conhece ninguém, como se phode. Entre os livros que deixei em sampa pra me enviarem depois, lembrei d'O Processo, do Kafka, que na real é daqui de perto, Praga, cidade-esquinas-de-vampiros. Muito visitarei.
Aí mais umas voltas pela cidade, lá pra um outro lado, bairro mais residencial, um pouco de deprê com classemédia alemã e com o fato que as pessoas são fisicamente muito parecidas umas com as outras praqueles lados, e isso é bem diferente do que eu conheço. Me peguei percebendo que uma mulher no bonde era tcheca, e isso aqui pra eles já é grandiferença (apesar de a república tcheca ficar a uns 100 km daqui).
De volta ao que agora é meu bairro, uma sensação de conforto e caos, uns neoripongos tocando violão na praça, panques andando pelas ruas, gente com cara de queremos conversar. Saí com um amigo pra explorar a rua que é o meio do bairro, aqui do lado do prédio, e me senti em Amsterdam, o que me deixou feliz. Panorama heterogêneo de gente, e até os carecas com cara de reaça me incomodaram menos que a classemédia do outro lado do rio. Aqui é bem bairro universitárioboêmioarrtishta, daquele jeito. E tem doner e kebap e currywurst e tudomais. Meio litro de cerveja local, Radeberger, € 2,50. Depósito de € 1,10 pra te forçar a devolver a linda caneca. De repente, tambores. Galera com faixas Bunte alguma coisa, se pans da festa do fim de semana. Uns com camisa verdeamarela, mas dezucéu como maltratam a batucada. Principalmente o tamborim, chega a dar dó, mas esse eu também não sei tocar. Batida inspirada nos Olodum da vida, mas bem mais quadrada. Se pans uma boa maneira de ganhar dinheiro, heh.
Hoje minha frau vai abrir conta no banco, e aí se pans a gente já consegue ter internet em casa. É que galera aqui não usa mais boleto bancário e dinheiro, é tudo cartão e débito em conta.
Outra coisa daqui é que sempre tem uma sirene tocando. Opinião de brazucas é que tiozinho alemão se sente sozinho, os filhos já têm suas próprias famílias, a frau já se foi, aí bate aquela carência e eles ligam pro hospital dizendo "tô mal, Schmertze, me busca" e vão encontrar os amigos no hospital.
No exercício da eterna capacidade mimética, de tornar-me invisível, desaparecer em meio à multidão, fiz a barba. E ainda não aparei o moicano