Sem fio - contexto, caminhos e bases

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Uma das obsessões fundadoras do projeto metá:fora e da MetaReciclagem era a ideia de mobilidade e de redes sem fio. Alguns dos primeiros rascunhos de projeto que surgiram tinham a ver com dispositivos móveis, e uma das forças motrizes que nos fizeram necessitar de computadores para experiências era uma ideia alimentada pelo dpadua de criar infra-estruturas de rede autônomas com base nos projetos de redes wi-fi metropolitanas. De lá pra cá, percorremos muitos caminhos paralelos, fizemos um monte de experiências, mas essa possibilidade sempre nos acompanhou.
Semana passada eu estava lendo um artigo de Armin Medosch chamado 45 revoluções por minuto. Armin é um dos responsáveis, junto com a Hive Networks, pelo projeto Hidden Histories, que cria espaços públicos de distribuição de mídia a partir de redes bluetooth e transmissores FM de baixa potência. No artigo, entremeado em uma história das mídias eletrônicas, ele situa o surgimento das primeiras utopias sem fio na invenção do telégrafo sem fio, no sonho de Nicolas Tesla em transmitir energia sem fios e na criação do rádio. Afirma que nos Estados Unidos - ao contrário de quase todo o resto do mundo, onde o rádio era rapidamente controlado pelo estado -, houve uma grande proliferação de radioamadores, e que o espírito de garagem deles precedeu a primeira onda de hackers de computadores, criando um modelo de inovação fora do mercado. Falando sobre o imaginário sem fio dos dias de hoje, Armin contrapõe de maneira direta as aplicações restritas e limitadas das redes de telefonia celular (que, ao lado de redes sociais comerciais como facebook e myspace, ele chama "tecnocracia da sociabilidade") à liberdade de experimentação possível em tecnologias como o wi-fi (que operam em redes que não requerem concessão ou licenciamento):

"Empresas de telefonia celular parecem incapazes de levar a cabo todo o espectro de benefícios das tecnologias que implementam. A revolução da telefonia móvel foi mesmo assim um sucesso em termos de números de usuários da rede e de ganhos econômicos. Assim o contraste entre redes comunitárias sem fio e telefonia móvel 3G oferece em si um local preferencial para entender-se o fetichismo de produtos no capitalismo de alta tecnologia.
Clientes de companhias de telefonia móvel e usuários de redes sociais são levados a comprar aqueles mundos ilusionários que vendem de volta para eles sua própria comunicação como produtos. A estética dos produtos é baseada em uma certa reciprocidade entre o significado estético de fazer o produto parecer "atraentes" para nós e o que consideramos que nos faz atraentes para outras pessoas.
O telefone celular (...) contém muitos anos de tempo de desenvolvimento social, o tempo de vida de cientistas, pesquisadores, programadores, e o trabalho daqueles que produziram os telefones em fábricas terceirizadas, e ainda contém materiais brutos como o Coltan extraído em condições desumanas em áreas de guerra civil no Congo. Ainda assim o que vemos em um telefone celular é a promessa de estar conectado e de ser aquela pessoa que a indústria projeta na gente através da publicidade. A publicidade aqui toma uma forma onde ela promete identidades, sugere modelos de personalidade aos quais podemos nos adaptar como a forma ergonômica do telefone se adapta a nossas mãos. Nos anúncios de 3G, encontramos a mulher consciente que tem um celular que combina com seu batom, maquiagem e joias; existe o guerreiro móvel com a barba por fazer, um jovem e confiante empreendedor que não precisa vestir um terno e pode confiar em estar "sempre conectado". O produto-fetiche telefone celular produz modelos de comportamento para o individualismo de seus usuários.
(...)
Apesar de as ideias por trás da invenção da tecnologia (wi-fi) serem comerciais, entusiastas de redes de computadores aproveitaram a oportunidade assim que o wi-fi apareceu no mercado e encontraram maneiras de desviar aquela tecnologia e aplicá-la para usos comunitários.
(...)
Redes comunitárias sem fio e software livre e de código aberto não aparecem na televisão ou na publicidade. Rede operadas pelos próprios usuários sem ganho financeiro não são produtos, são valor de uso, pura e simplesmente: existem fora do sistema de fetichização de produtos."

Não chego a concordar totalmente com a crítica fundamental às redes 3G, até porque aqui no Brasil das estruturas instáveis ele pode fornecer conectividade para quem não tem alternativas. Conheci semana passada uma lan house aqui em Ubatuba que compartilha uma conexão 3G. É até possível pensar em alternativas híbridas, misturando 3G e redes wi-fi comunitárias, como o pessoal faz com a stompbox. Mas de fato, o potencial de apropriação das redes wi-fi é gigantesco.
Me interessa a defesa das redes wi-fi comunitárias, não só como alternativas de acesso à internet, mas também como potencial de criação de redes autônomas, hiperlocais. Em uma apresentação em Porto Alegre na Debian Conference de 2004 em que falávamos sobre redes wi-fi comunitárias eu e o Dalton fomos questionados por um argentino que disse que uma rede wi-fi não serviria pra nada, já que na cidade dele não existia internet. Argumentamos que havia um grande potencial para usar o wi-fi como intranet, usando qualquer pc para oferecer servidor web, chat e diversos outros serviços.
Um par de anos depois, participei da elaboração de um projeto que pretendia organizar uma rede wi-fi na Cidade Tiradentes, em São Paulo. Um dos entraves do projeto foi justamente a dificuldade para a conexão à internet. Tentamos convencer o pessoal a começar com serviços locais, mas o fetiche do acesso à internet venceu a possibilidade de aplicações locais rodando diretamente entre vizinhos e vizinhas. Mais tarde, conheci o pessoal que implementou projetos como o alemão Freifunk, o catalão Guifi e o internacional Hive Networks, e o conceito das redes mesh se popularizou por conta do laptop de cem dólares (ou mais). Só o conceito, mas enfim, é um começo que ajuda a naturalizar a argumentação.
Também na semana passada saiu a edição do Wi journal dedicada às mídias locativas (tem termo melhor?) no Brasil. André Lemos fala sobre anotações eletrônicas urbanas como um dos tipos possíveis de mídia locativa, e mais pra frente comenta sobre a expansão de territórios informacionais possíveis, a partir de uma fusão entre espaço eletrônico e espaço físico. Acho possível imaginar que uma rede composta de nós locais que faça uso da proximidade e da potencial exclusividade de informação local pode ser um elemento interessante a explorar, não só como anotação urbana mas como  elemento de intervenção urbana (talvez não só como comentário, mas como "objeto" - ou inobjeto - urbano em si).
Já há algum tempo, eu estou cozinhando uma mistura de elementos que pode ir um pouco nesse sentido. Comecei imaginando estender a funcionalidade de projetos de captura e distribuição de mídia como a mimoSa e a burnstation para uma rede wi-fi: criar uma rede mesh com um servidor local que oferecesse às pessoas que se conectam a ela a possibilidade de enviar e baixar conteúdo. Comecei lentamente a estudar caminhos técnicos para isso (e a rabiscar sobre redes sem fio e celulares). Semana passada, finalizei um primeiro protótipo de hardware. Vou contar no próximo post o que aprendi nesse processo.