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Durante algumas semanas desse mês, fiz um rolê por alguns lugares da Europa, participando de eventos e conhecendo pessoas. Esse post é a primeira parte de uma tentativa de documentação com base em anotações, tweets e lembranças.
Genebra - Lift10
Meu primeiro destino foi Genebra, onde se realizaria a conferência Lift 10. Eu fui convidado a falar sobre MetaReciclagem e Brasil. Algumas semanas antes, um dos organizadores me mandou alguns vídeos com exemplos de palestras que foram bem recebidas em edições anteriores. Eram palestras de altíssimo nível, tanto que chegaram a me intimidar. Isso acabou me distraindo um pouco da conferência - fiquei bastante tempo andando pela cidade e elaborando ideias, ou no quarto escrevendo e reescrevendo.
Andar por Genebra é uma experiência singular. Um ar romântico e algo literário - impossível não procurar o Outro Borges espreitando em algum banco de praça, debaixo do frio inesperado para uma primavera. Além disso, a presença de todas as instituições internacionais em torno da ONU - e das delegações do mundo inteiro que vão para lá pleitear, debater, influenciar - evoca uma certa sensação de fronteira. Mas é uma fronteira mundial, uma fronteira de todas as nações, que parece atrair a presença de muitxs feiticeirxs. A tudo isso se junta a coisa mais fria do dinheiro puro - muitos bancos, muitas lojas de grife, muita gente que cultua essas coisas.
Publiquei mais algumas coisas sobre a cidade e a estrutura da Lift no meu blog.
Uma das poucas sessões que assisti foi sobre "A redefinição da privacidade". Anotações abaixo:
Oliver Glassey declarou que as redes sociais representam o fim da privacidade. Disse que é um equívoco pensar que as novas gerações (os "nativos digitais", nas palavras dele) não sabem, não se preocupam ou nada fazem em relação a privacidade. Falou também sobre a moldagem coletiva da identidade social online: redes sociais como filtragem e enquadramento de identidade; diferenças entre a identidade virtual idealizada vs. a vida real estendida; exploração da própria definição do self. Sugeriu que, ao contrário do que se pensa, os perfis do facebook refletem a personalidade real das pessoas, não a idealização feita para adequação ao contexto local. Falou ainda sobre a reinvenção heterogênea dos limites particulares e pessoais: levantou a questão da privacidade como intimidade compartilhada (citando as pessoas que compartilham suas senhas); a oposição entre mídia íntima e "extimidade"; e sobre a emergência de culturas locais de intimidade e privacidade. Para ele, é o contexto social que define a privacidade. Comparou as identidades dinâmicas à mudança rápida de roupas. Colocou que a flexibilidade nos papeis sociais é diferente do ajuste fino de configurações de privacidade. Levantou algumas questões importantes: que a próxima brecha digital será entre as pessoas que têm ou não têm a possibilidade de reconstruir a privacidade online; e perguntou quais ferramentas, regras e normas vão permitir a memória social e também a amnésia social (ambas igualmente importantes).
Minha opinião sobre a fala do Oliver é que tudo bem, o pânico com a privacidade é um exagero, mas que existem ameaças estruturais a ela que a mera criatividade e flexibilidade sociais não vão conseguir enfrentar.
Em seguida, entrou o alemão Chris Heller. Um auto-intitulado futurista, ele entrou no palco falando sobre pós-privacidade. Declarou que a privacidade se foi de vez, e que as pessoas tendem a associar privacidade a liberdade. Disse que não concorda totalmente. Usou como exemplo uma vila medieval - não existia privacidade. Evocou a ideia de que o espaço particular é feminino, e o espaço público masculino. Disse que também associa privacidade ao isolamento e à vergonha. Dá como exemplo a o fato de que os movimentos feminista e gay tiveram que ir a público (no sentido oposto à privacidade) para promover a tolerância, indicando que nem sempre a privacidade se trata de liberdade. Continuou no exemplo da vila medieval, sugerindo que se alguém fosse diferente, todos saberiam - o que levaria à repressão da diferença. Mas contrapõe a isso o fato de que nas redes, as pessoas podem escolher a sociedade que querem. Falou também da geração de conhecimento através da abertura (openness) para criticar o DRM.
A sessão continuou com Martin Künzi, do exército da salvação, falando sobre como usam as redes para suas atividades. Não me interessou muito. Mais tarde, Lucas Grolleau contou um pouco do seu trabalho com instrumentos musicais vintage, e fez música ao vivo com instrumentos e um sampler. A sessão terminou com Chris Woebken e Kenichi Okada apresentando o projeto Animal Superpowers, que tenta reproduzir com dispositivos eletrônicos a percepção de diferentes animais (formigas, pombos, girafas).
Perdi o interesse na sessão sobre "As velhas novas mídias". Quase saindo do CICG, algumas coisas feitas com material reaproveitado chamaram minha atenção. Parei para conversar e conheci Michael Shiloh e Judy Castro, que realizavam um workshop de seu projeto Teach me to make, que pros meus olhos tendenciosos pareceu pura MetaReciclagem. Em resumo, os participantes do workshop passaram o dia inteiro inventando coisas a partir de um monte de objetos que estavam por lá. Toda aquela coisa de incentivar uma sensibilidade criativa do remix, do reuso, da ressignificação. Bom contato, e vou tentar manter pra gente articular algum tipo de intercâmbio.
No dia seguinte, cheguei para a sessão sobre política, que começou com Rahaf Harfoush. Ela - que trabalha para o Fórum Econômico Mundial - falou sobre a campanha do Obama, numa perspectiva muito norte-americana e objetiva. O tom era sobre ferramentas para conquistar, dominar, obter sucesso e vitória. Me incomodou bastante que uma mesa sobre "política" só falasse sobre "campanha". Sinal dos tempos, claro. Espetáculo puro. Para ela, um vídeo do Obama jogando basquete, publicado na internet, é "criar relação com as pessoas". Depois ela melhorou um pouco, falando sobre opendata. Mas não trouxe nada de novo, na minha opinião. Na hora, perguntei no twitter: "e a política do dia a dia, onde tá? política tática, de bairro, de vizinhança. como as tecnologias mudam essa política?". Ela ainda deu uma bola dentro comentando sobre o pessoal do Ushahidi, sobre quem eu já tinha ouvido falar pelo Cesar Harada. Rahaf também falou sobre o papel das redes sociais nos protestos no Irã. Ao fim da apresentação, perguntas:
Laurent Haug: as mídias sociais poderiam ser utilizadas para outras finalidades além de campanhas?
Rahaf sim, para entender o que as pessoas querem.
Laurent: como gerenciar a grande quantidade de perguntas?
Rahaf: O melhor é deixar as próprias pessoas decidirem quais são as perguntas importantes.
Laurent: Isso ainda funciona se todos fizerem?
Rahaf: A campanha mostrou as possibilidades. Daqui a pouco pode ser diferente.
Laurent: Dados são facas de dois gumes?
Rahaf: Quando uma coisa passa a ser monitorada, outra aparece. As pessoas são espertas.
A apresentação seguinte foi de Claudia Sommer, do Greenpeace alemão. Já começou limitada, com Laurent dizendo que o Greenpeace é outra organização que está "espalhando sua mensagem". Mais uma apresentação sobre campanhas, sem muita conversa de política cotidiana.
Encontrei o colega bricoleiro Alejo Duque, e aproveitei pra entrevistá-lo enquanto ele almoçava. Conversamos sobre coisas que estão acontecendo no Brasil e na Colômbia, sobre a ideia de laboratórios de mídia e como ela se adapta a diferentes contextos. Vou publicar a entrevista nas próximas semanas no blog Redelabs.
Voltei pro hotel pra preparar minha apresentação, que aconteceria no dia seguinte. Perdi a apresentação do simpático Antonio Casilli. Eu até queria voltar também pro debate sobre comunidades online, mas não consegui. Fiquei acordado até as três e pouco da manhã, escrevendo.
Na sexta-feira, fui ao CICG de manhã para passar o som e testar meu laptop - tudo muito profissional - e voltei pro hotel pra dormir mais uma horinha. Fui de novo para lá por volta do meio-dia. Estava terminando de escrever e organizar os slides. A sessão na qual eu falaria começou com Richard Murton, da Accenture, desfiando todo o jargão corporativo que tenta descobrir maneiras de transformar a sociabilidade online em dinheiro. Continuou com Russel Davies, do Really Interesting Group, com uma apresentação que para meu azar foi uma das mais bem avaliadas de toda a conferência. Achei também metarecicleira uma frase dele: "existem pedaços magníficos de infraestrutura dando sopa". Logo depois de Russel, foi minha vez.
Já publiquei um relato mais detalhado aqui, então não vou me alongar por aqui. Ao fim, algumas pessoas interessantes vieram conversar. Minha percepção não foi tão boa, mas tudo bem. Gostei de ter sido elogiado pelo Nicolas Nova, um dos organizadores da Lift. Talvez ainda mais interessante, um monte de gente no Brasil comentou no twitter sobre a apresentação.
Fiquei desconfortável com o formato da Lift - excelente para palestrantes carismáticos, o que não é meu estilo. Também me incomodou o foco geral em startups, imagem pública, publicidade e extração de lucro das mídias sociais. Puro espetáculo, muita preocupação com lucratividade e pouca com o mundo lá fora das planilhas. O fato de terem me chamado e aberto espaço pra outra perspectiva é interessante, mas ainda assim não pude deixar de me sentir o desvio controlado do tom geral da conferência. Lembrei um pouco da Shift em Lisboa, onde falei em 2006. Até tentei ir à festa de encerramento da Lift, mas rolou aquela cena típica de entrar no bar, as pessoas olharem por meio segundo e depois voltarem a atenção para seus grupinhos fechados outra vez. Galera esquisita, sem muito interesse na diferença. Ou é encanação minha, deixa pra lá.
Mais sobre a Lift, minha participação e um pouquinho de Genebra neste post.
Karlsruhe - ZKM
Fui de Genebra a Karlsruhe no sábado, de trem. Ainda na Suíça, o clima romântico à beira do lago Léman foi mudando para uma paisagem mais inexplorada, de montanha. Já fui reprogramando a mente para trocar meu parco francês pelo alemão infantil. Fiz conexão em Basileia. Ecos de história (Nietzsche) e da política do lixo eletrônico (a convenção de Basileia). Tem alguma coisa de mistura ali, de um tipo mais comum de fronteira. À medida que avançava para a Alemanha e tomava distância da Suíça, percebia que nesta a mistura entre alemães, franceses e italianos pode ter sido benéfica para os todos.
Percebi com algum espanto que o alemão agora me incomoda muito menos do que quando vivi por lá. É claro que a sensação vai além da língua - diferentes regiões da Alemanha têm diferentes níveis de abertura e interesse pela diferença. De dentro do trem, as placas com nomes como Freiburg (Cidade Livre) e Offenburg (Cidade Aberta) davam alguma esperança. Enquanto me aproximava do Meno, pensava nos antepassados da minha mãe que trocaram a Alemanha pelo Brasil no início do século XIX. Eram camponeses famintos? Desajustados, sonhadores? Atravessaram o mundo por ousadia, ganância cega, aventura, burrice? Impossível saber.
Karlsruhe me recebeu com sol. O povo é bastante amigável, a cidade organizada como é de se esperar e bonitinha como eu não imaginava. Logo ao lado da estação de trem, um monte de bicicletas me fizeram pensar em Amsterdam (e Ubatuba). Fiz check-in no Ibis ao lado da estação, larguei as malas e fui direto ao ZKM. Foi uma visita muito rápida, mas significativa. Percorri o máximo que pude dos experimentos expostos lá - muita coisa interativa, com experiências em 3D, e outras experimentações.
Fiquei pensando na importância desse tipo de espaço de exibição permanente. Tanto no sentido de criar acervo e memória quanto para formar público. Tive a impressão de que ainda estamos muito no começo, de que ainda é possível um monte de experimentação de linguagem e percepção, e que isso também tem um pouco de adequar a percepção. Fiquei pensando na transição da representação pictórica em duas dimensões para o desenvolvimento do olhar que entende a representação com perspectiva e planos de fuga - além da inovação formal, também é importante a formação da percepção.
Dresden e Berlin
Saindo de Karlsruhe passei dois dias em Dresden, onde vivi por quatro meses em 2007. Passando pelo prédio onde vivia, descobri que existe alguém chamadx T.witting ;). Dei algumas voltas em Neustadt, bebi as cervejas locais Radeberger e Waldschlösschen, tentei escutar a rádio livre do bairro (mas só peguei os horários de música clássica). Entrei em contato com o pessoal do TMA, mas não cheguei a visitar o espaço. Foi um tempo mais de descanso e de reconciliação com a cidade que foi tão fechada no passado - mas que dessa vez foi mais tranquila, porque eu não tinha expectativas ou maiores compromissos. Percebi mais claramente a importância de Neustadt - bairro de imigrantes, estudantes, artistas e minorias em geral - em evitar que Dresden vire um inferno neonazi.
Encerrei a parte continental da viagem indo de trem até Berlim. Estava muito frio para andar, então acabei passando a hora e meia que tinha antes de ir para o aeroporto na própria estação de trem. Café, supermercado para comprar mostarda e teewurst, e lá fui eu para o aeroporto Schönefeld, pegar um busão aéreo vôo da Easyjet para Liverpool.