http://ubalab.org/blog/diario-do-ventre-da-besta-parte-2
Segunda parte do relato sobre minha participação no ISEA, em setembro de 2012. Por enquanto vai sem os links mesmo. Assim que conseguir eu publico a terceira e última.
Em algum ponto do relativamente curto trajeto entre Atlanta e Albuquerque, comecei a prestar atenção à paisagem pela janela do avião. O horizonte se elevava aos poucos, passando por bonitas rochas recortadas e continuando a subir. O verde dava lugar àquela cor avermelhada dos desertos do oeste estadunidense. Sobrevoando aquela amplidão seca, fiquei pensando sobre as dificuldades de fazer funcionar uma cidade contemporânea ali. A aridez só era cortada por ilhas verdes, provavelmente instalações agrícolas intensivas. Alguns açudes, cercados do que parecia ser areia. Imaginei o transporte de combustível pelo meio do deserto. O consumo, a logística. A guerra para sustentar esses fluxos.
O aeroporto de Albuquerque (chamado Sunport, "porto do sol") poderia estar em alguma cidade turística litorânea. Cores fortes, uma luz quente vinda de fora. A influência mexicana é bem caracterizada, ao ponto da artificialidade - mais reconstrução do que herança. Encontrei um telefone público (que realmente tinha uma lista telefônica pendurada) e usei um quarto de dólar para ligar ao hotel requisitando o serviço de traslado. Em alguns minutos chegou uma van para me buscar. Espaçosa e silenciosa, como o próprio deserto havia parecido lá de cima. Lembrei de Jim Morrison fritando ao sol, viajando nos silêncios.
A cidade é iluminada, sob um céu de azul intenso. Seria um período curto em Albuquerque - pouco mais do que os três dias que passei em Lisboa em 2006. Sabia que não conseguiria conhecer muito da cidade, mas queria pelo menos ter alguma impressão. Não vi muita gente na rua, o que atribuí ao sol inclemente. Algumas áreas verdes, que parecem exigir trabalho para se manter. Muitos carros grandes. Grandes mesmo, bem maiores do que aqueles que a gente considera grandes aqui no Brasil. Alguns deles tinham placas coloridas. Uma picape gigante, vermelha, com a placa "ALL FUN" em cores de pôr do sol. Outros tinham placas em espanhol. Cidadãos com feições indígenas. Eu estava perto do Rio Grande (e ainda era vinte de setembro, o que me levou de volta a Porto Alegre). Faroeste contemporâneo, eu como forasteiro. Estranhei as casas de madeira em um lugar com tanto sol e temperatura relativamente alta. Mas o inverno deve ser frio.
Cheguei ao Hotel Blue, à beira do traçado urbano da Rota 66. Fiquei um pouco perdido ali na recepção, tímido de falar inglês sem saber qual sotaque usar. Me registrei, assinei com uma caneta de plástico em uma tela eletrônica. O chão do lobby era quadriculado em preto e branco, talvez uma citação aos anos sessenta. Algo de parque temático também. Peguei um par de cookies e subi ao quarto. O Hotel Blue deve ter passado por uma reforma e modernização em tempos recentes, mas tem um formato híbrido de hotel padrão com motel estadunidense - corredores externos e quartos voltados para fora. Bastante autonomia dentro do quarto: frigobar, máquina de café, microondas, tábua e ferro de passar roupa. Reservatórios práticos embutidos na parede oferecem sabonete líquido, shampoo e creme hidratante. Para o viajante não ter preocupações.
Fiquei fritando na cama por algum tempo. À tarde, a portaria me avisa que haviam chegado algumas encomendas. Eu havia comprado um substituto para meu laptop velho de guerra, e mais alguns eletrônicos que venderia na volta para ajudar a pagar pelo computador novo. Tinha feito um bom negócio, encomendando um laptop do ano anterior - já fora de linha por lá - pelo qual paguei mais ou menos metade do preço corrente no Brasil. Para evitar problemas na alfândega, havia deixado minha máquina antiga em casa e levado somente o HD em um case externo. Desci em instantes para descobrir o que havia chegado - um tablet e um smartphone, e nada do computador. Abri as embalagens, testei os equipamentos para ver se funcionavam. Tudo ok.
Por volta das seis da tarde, saí do hotel e fui até o centro histórico, "Old Town" de Albuquerque. Ao contrário do que eu imaginava, parecia um bairro cenográfico. Aquela cara de distrito turístico (mas não vi muitos turistas). Muitas lojas de souvenirs. Construções que sugeriam o estilo mexicano, um ou outro detalhe de filme americano - como as caixas de correio típicas ou aquela cerca de madeira de desenho animado - e muitos nomes em espanhol. Os cerca de dois quilômetros que percorri a pé para chegar lá eram desertos - vi passarem algumas dezenas de carros, e lembro de ter visto menos de meia dúzia de pessoas andando pelas ruas. A temperatura era agradável, tendendo ao quente. Fiquei circulando entre as estações de rádio locais: música mexicana, rap e a famosa NPR, rádio pública nacional. Em uma estação ouvi propaganda eleitoral contrária a Obama, em espanhol. Não tomei nota dos argumentos.
Cheguei no começo da noite ao Museu de Albuquerque, uma das sedes do ISEA. Tinha um pedaço daquela fauna de arte eletrônica que eu já conhecia de outros eventos. Visual moderninho, no meio do caminho entre a assimilação do espetáculo e a crítica intelectualizada. Peguei minhas credenciais. Flanei pelo ambiente, ainda cansado da viagem, até começar a tropeçar em conhecidos. Os brasileiros Rodrigo Minelli, Lucas Bambozzi e Bruno Vianna circulavam ali no saguão. Lenara Verle estava no café do Museu. Jaromil, comparsa de Bricolabs e outras redes, e Andres Burbano, o colombiano que me convidou ao ISEA, também circulavam. Subi para ver a obra de Bruno exposta no terraço do Museu: uma instalação que usava jatos de água reposicionados automaticamente como antenas para captar transmissões de satélite. Ao lado, um PC rodando Linux mostrava uma visualização dos satélites passando pelo céu naquele momento.
Havia sido convidado a jantar ali perto com algumas figuras importantes do mundo da arte/ciência/tecnologia, mas não me senti descansado o suficiente para encetar conversas conceituais aprofundadas em uma língua que não é a minha. Acabei tomando com Lucas o transporte oferecido pelo evento: um lindo e antigo ônibus escolar que nos levaria à abertura no 516 arts, galeria no centro da cidade. Bruno iria na bicicleta que alugara no lugar em que estava ficando. Já na entrada, encontramos os três gambiólogos. Já chegavam tirando onda: o Gambiociclo que fizeram nas semanas anteriores estava bem no hall da galeria. Lugar nobre. O ambiente estava lotado. Encontrei mais alguns conhecidos, mas o resquício de jet lag já estava me deixando em modo semi-social. O pessoal planejava sair de lá direto para uma microcervejaria local, mas acabei declinando. Voltei ao hotel com um cansaço pesado, mas ainda eram oito e pouco da noite. Encomendei pela internet um sanduíche de um lugar chamado Jimmy John's. Capotei às dez e pouco e só acordei às seis da manhã.
O café da manhã no Hotel Blue não tinha nenhum destaque. As opções eram o café de máquina (ruim, mas em compensação disponível o dia inteiro como os chás, sucos e cookies) e uma garrafa térmica com "café Starbucks" (regular). Sucos, pães, aquele iogurte com sabor de fruta sintética, etc. Uma TV gigante com o noticiário, focado principalmente na disputa pela presidência estadunidense.
Fui outra vez caminhando até o Museu de Albuquerque. Sol batendo forte. Me arrependi de não ter levado um chapéu. A cidade parecia vazia durante o dia também. Passei por duas escolas no caminho: uma parecia ter uma maioria de alunos latinos, a outra com crianças mais branquinhas e lourinhas. Na praça do centro histórico, uma bandinha de música mexicana parecia ensaiar para um casamento. Encontrei alguns pés floridos de lavanda, e em uma cerca topei com uvas pequenas e doces.
Cheguei para assistir ao painel sobre "Econotopias". Falariam Jaromil (sobre Bitcoin e Dyndy), Caroline Woolard (sobre a iniciativa Ourgoods) e Ted Howard (cooperativas Evergreen). Jaromil mencionou Marx, que apesar de fazer todo sentido para falar sobre valor e troca, soou algo estranho naquele lugar do mundo. Pensei sentir um incômodo no casal ao meu lado, mas pode ter sido mera impressão.
Jaromil fez uma crítica clara e contundente à sociedade atual, na qual "os humanos são o meio, e o objeto é o dinheiro". Descreveu o sistema financeiro como uma máquina complexa para representar afeto, valores, interesses e natureza em um jogo abstrato. Apresentou o Bitcoin, não sem criticar a dependência que a extração de coins tem de computadores poderosos - mas relativizou essa dependência, em comparação à dependência institucional de segurança das moedas nacionais. Posicionou o Bitcoin, ecoando o Chaos Computer Club, como exemplo de rede que resiste aos poderes centralizados/centralizadores.
Caroline Woolard apresentou o Ourgoods, que propõe uma economia de escambo para produtores culturais. Depreendi dali uma lógica de classificados, que lembrava o Bank of Common Knowledge do pessoal do Platoniq em Barcelona. Senti um aprisionamento forte ao mundo do espetáculo, ou à lógica do microespetáculo. Usava um monte de palavras corretas e aceitáveis nos dias de hoje. Construir uma cultura de cooperação. A economia não produz somente bens e serviços, também nos produz. Citou Paulo Freire - ação sem reflexão é cega, reflexão sem ação é impotente (traduzindo da tradução, posso ter perdido algo por aí).
Ted Howard veio contar sobre suas experiências incubando cooperativas nos EUA. Segundo o programa do ISEA, ele foi considerado em algum lugar como um dos "25 visionários que vão mudar o mundo". Ele fala bem, tem aquela postura profissional que só quem leva muito sério a própria pessoa consegue ter. Profissional ao extremo. Falou sobre a crescente disparidade social nos EUA. Citou estatísticas. Falou que o país tem 100 milhões de pessoas que podem ser consideradas pobres. Falou sobre a (sempre citada) cooperativa de Mondragon no País Basco. Descreveu sua estratégia para criar cooperativas nos EUA: encontrar uma instituição-âncora, criar um negócio cooperativo com a comunidade, crescer, conectar-se a setores em expansão, garantir financiamento. Era um discurso bem ensaiado e totalmente positivo, dentro de uma lógica específica. Mas tudo se resumia a criar novas maneiras de o cidadão comum estadunidense garantir seu emprego e continuar produzindo com menos intermediários (e mantendo seu padrão de vida, comprando seu 6-pack de Budweiser, comendo comida gordurosa e assistindo TV deitado no sofá).
Ao fim da apresentação de Ted Howard, um autoproclamado cientista mexicano o acusou de ingenuidade, ou de não estar falando a sério. Howard não discutiu. Jaromil pegou o microfone e sugeriu que cada povo precisa encontrar sua própria resposta. Naquele país, segundo ele, o contexto é diferente de lugares que foram colonizados. É necessário encontrar soluções autodeterminadas. Para Jaromil, nos EUA o capitalismo é visto como uma coisa boa, então eles precisam referir-se ao passado. Mas existiria algo comum entre os três projetos apresentados no painel - eles apontam para um futuro que se opõe à tendência política corrente, de austeridade como solução para as crises econômicas.
Outro senhor sugeriu a necessidade de criar um futuro novo e imprevisível. Jaromil argumentou que existe uma falha recorrente nas economias alternativas: tentar quantificar relacionamentos. Howard falou que é muito difícil pensar "além do capitalismo". Se você não gosta do socialismo de estado e não quer o capitalismo corporativo, o que pode fazer? Falou que nos EUA existe a impressão de que o capitalismo foi um presente enviado por deus. Meses depois, enquanto escrevo esse relato, acabei de terminar de ler o Futuros Imaginários de Richard Barbrook. E vem à minha mente a imagem do "marxismo sem Marx" que teria sido forjado nos EUA ao longo do século XX (junto à "cibernética sem Wiener" e ao "mcluhanismo sem McLuhan").
Desde a apresentação de Howard, passando pela intervenção do mexicano e até o fim da conversa, me atravessava uma sensação: eles não vão entender. É um sistema no qual todo discurso libertário já é automaticamente capturado ou enquadrado pelo mercado. Não existe saída naquele contexto. Me senti mais um peixe fora do aquário (mas a sensação não era nova).
Voltei ao hotel a pé, para descobrir se meu computador havia chegado. Nada. Já estava ficando preocupado: ele deveria estar no hotel um dia antes da minha chegada aos EUA. No caminho havia parado em um 7-11 para comprar cervejas e comida, mas não consegui (não lembro bem por quê - acho que estava sem meu passaporte ou havia esquecido o cartão). Fui dar uma volta perto da estação de trem, buscando alguma coisa para comer. Parei em um mexicano, peguei um burrito e um refrigerante gigantesco. Saí outra vez a pé. No caminho encontrei um caminhão da Fedex e perguntei ao motorista se era normal atrasar uma encomenda. O rapaz falou que não. Continuei até o hotel Albuquerque. Visitei o estande de uma editora, conversei com um engenheiro da Intel (que confessou que ia esperar até a chegada da segunda geração de Ultrabooks para ficar com um). Peguei um trecho da mesa "Authorlessness", interessante mas sem muita novidade. Um casamento acontecia no jardim do hotel.
Voltei ao Museu de Albuquerque, mas não encontrei ninguém. Aproveitando o wifi livre, encontrei pelo celular uma loja que alugava bicicletas. Caminhei até lá, debaixo de sol e calor, sonhando em pedalar e tomar vento na cara. Desisti ao saber do preço, 35 dólares por dia. Continuei andando em direção ao hotel e em uma esquina encontrei alguns conhecidos, que saíam de um debate sobre "economias alternativas" no Harwood Art Center. Segui o pessoal até um bar meio metido (não sem antes passarmos por um drive-thru de caixa eletrônico de banco, que deixou os europeus do grupo surpresos: "as pessoas não saem do carro nem para sacar dinheiro?"). No bar, conversamos em grupos até que um habitante de San Francisco (e lá isso tem um monte de significados adjacentes - meio hippie, meio de esquerda, simpático, tranquilo) sugeriu uma rodada geral de apresentações. Falei um pouco sobre o que estava fazendo ali, mas a sensação de estar em uma dinâmica de grupo (planejada, controlada, analisada) me espantou.
Voltei ao hotel para preparar minha apresentação para o painel da manhã de sábado. Liguei para a empresa que vendeu meu laptop, descobri que ao contrário do que eu havia requisitado - e pago -, eles não haviam enviado a encomenda por remessa expressa. Ela deveria estar no meio dos EUA, pelo correio comum. Chegaria na segunda-feira, a tempo de me encontrar no hotel, mas já depois das minhas duas apresentações. Recebi de volta o valor da entrega, e foi tudo que consegui. Teria que usar um dos computadores do lobby. Tentei subir o sistema do meu HD externo conectado via USB, mas não funcionou. Acabei usando o OpenOffice.org para Windows do computador do hotel. No processo, acabei perdendo a noite de Gala do ISEA. Mas consegui preparar a apresentação para a manhã seguinte. Depois saí, dei uma volta pelo centro, sondei alguns bares mas não tive vontade de entrar e beber sozinho. Voltei ao hotel e pedi outro sanduíche do mesmo lugar.
Segunda parte do relato sobre minha participação no ISEA, em setembro de 2012. Por enquanto vai sem os links mesmo. Assim que conseguir eu publico a terceira e última. Veja também: parte 1 e parte 3.Em algum ponto do relativamente curto trajeto entre Atlanta e Albuquerque, comecei a prestar atenção à paisagem pela janela do avião. O horizonte se elevava aos poucos, passando por bonitas rochas recortadas e continuando a subir. O verde dava lugar àquela cor avermelhada dos desertos do oeste estadunidense. Sobrevoando aquela amplidão seca, fiquei pensando sobre as dificuldades de fazer funcionar uma cidade contemporânea ali. A aridez só era cortada por ilhas verdes, provavelmente instalações agrícolas intensivas. Alguns açudes, cercados do que parecia ser areia. Imaginei o transporte de combustível pelo meio do deserto. O consumo, a logística. A guerra para sustentar esses fluxos.O aeroporto de Albuquerque (chamado Sunport, "porto do sol") poderia estar em alguma cidade turística litorânea. Cores fortes, uma luz quente vinda de fora. A influência mexicana é bem caracterizada, ao ponto da artificialidade - mais reconstrução do que herança. Encontrei um telefone público (que realmente tinha uma lista telefônica pendurada) e usei um quarto de dólar para ligar ao hotel requisitando o serviço de traslado. Em alguns minutos chegou uma van para me buscar. Espaçosa e silenciosa, como o próprio deserto havia parecido lá de cima. Lembrei de Jim Morrison fritando ao sol, viajando nos silêncios.A cidade é iluminada, sob um céu de azul intenso. Seria um período curto em Albuquerque - pouco mais do que os três dias que passei em Lisboa em 2006. Sabia que não conseguiria conhecer muito da cidade, mas queria pelo menos ter alguma impressão. Não vi muita gente na rua, o que atribuí ao sol inclemente. Algumas áreas verdes, que parecem exigir trabalho para se manter. Muitos carros grandes. Grandes mesmo, bem maiores do que aqueles que a gente considera grandes aqui no Brasil. Alguns deles tinham placas coloridas. Uma picape gigante, vermelha, com a placa "ALL FUN" em cores de pôr do sol. Outros tinham placas em espanhol. Cidadãos com feições indígenas. Eu estava perto do Rio Grande (e ainda era vinte de setembro, o que me levou de volta a Porto Alegre). Faroeste contemporâneo, eu como forasteiro. Estranhei as casas de madeira em um lugar com tanto sol e temperatura relativamente alta. Mas o inverno deve ser frio.Cheguei ao Hotel Blue, à beira do traçado urbano da Rota 66. Fiquei um pouco perdido ali na recepção, tímido de falar inglês sem saber qual sotaque usar. Me registrei, assinei com uma caneta de plástico em uma tela eletrônica. O chão do lobby era quadriculado em preto e branco, talvez uma citação aos anos sessenta. Algo de parque temático também. Peguei um par de cookies e subi ao quarto. O Hotel Blue deve ter passado por uma reforma e modernização em tempos recentes, mas tem um formato híbrido de hotel padrão com motel estadunidense - corredores externos e quartos voltados para fora. Bastante autonomia dentro do quarto: frigobar, máquina de café, microondas, tábua e ferro de passar roupa. Reservatórios práticos embutidos na parede oferecem sabonete líquido, shampoo e creme hidratante. Para o viajante não ter preocupações.Fiquei fritando na cama por algum tempo. À tarde, a portaria me avisa que haviam chegado algumas encomendas. Eu havia comprado um substituto para meu laptop velho de guerra, e mais alguns eletrônicos que venderia na volta para ajudar a pagar pelo computador novo. Tinha feito um bom negócio, encomendando um laptop do ano anterior - já fora de linha por lá - pelo qual paguei mais ou menos metade do preço corrente no Brasil. Para evitar problemas na alfândega, havia deixado minha máquina antiga em casa e levado somente o HD em um case externo. Desci em instantes para descobrir o que havia chegado - um tablet e um smartphone, e nada do computador. Abri as embalagens, testei os equipamentos para ver se funcionavam. Tudo ok.Por volta das seis da tarde, saí do hotel e fui até o centro histórico, "Old Town" de Albuquerque. Ao contrário do que eu imaginava, parecia um bairro cenográfico. Aquela cara de distrito turístico (mas não vi muitos turistas). Muitas lojas de souvenirs. Construções que sugeriam o estilo mexicano, um ou outro detalhe de filme americano - como as caixas de correio típicas ou aquela cerca de madeira de desenho animado - e muitos nomes em espanhol. Os cerca de dois quilômetros que percorri a pé para chegar lá eram desertos - vi passarem algumas dezenas de carros, e lembro de ter visto menos de meia dúzia de pessoas andando pelas ruas. A temperatura era agradável, tendendo ao quente. Fiquei circulando entre as estações de rádio locais: música mexicana, rap e a famosa NPR, rádio pública nacional. Em uma estação ouvi propaganda eleitoral contrária a Obama, em espanhol. Não tomei nota dos argumentos.Cheguei no começo da noite ao Museu de Albuquerque, uma das sedes do ISEA. Tinha um pedaço daquela fauna de arte eletrônica que eu já conhecia de outros eventos. Visual moderninho, no meio do caminho entre a assimilação do espetáculo e a crítica intelectualizada. Peguei minhas credenciais. Flanei pelo ambiente, ainda cansado da viagem, até começar a tropeçar em conhecidos. Os brasileiros Rodrigo Minelli, Lucas Bambozzi e Bruno Vianna circulavam ali no saguão. Lenara Verle estava no café do Museu. Jaromil, comparsa de Bricolabs e outras redes, e Andres Burbano, o colombiano que me convidou ao ISEA, também circulavam. Subi para ver a obra de Bruno exposta no terraço do Museu: uma instalação que usava jatos de água reposicionados automaticamente como antenas para captar transmissões de satélite. Ao lado, um PC rodando Linux mostrava uma visualização dos satélites passando pelo céu naquele momento.Havia sido convidado a jantar ali perto com algumas figuras importantes do mundo da arte/ciência/tecnologia, mas não me senti descansado o suficiente para encetar conversas conceituais aprofundadas em uma língua que não é a minha. Acabei tomando com Lucas o transporte oferecido pelo evento: um lindo e antigo ônibus escolar que nos levaria à abertura no 516 arts, galeria no centro da cidade. Bruno iria na bicicleta que alugara no lugar em que estava ficando. Já na entrada, encontramos os três gambiólogos. Já chegavam tirando onda: o Gambiociclo que fizeram nas semanas anteriores estava bem no hall da galeria. Lugar nobre. O ambiente estava lotado. Encontrei mais alguns conhecidos, mas o resquício de jet lag já estava me deixando em modo semi-social. O pessoal planejava sair de lá direto para uma microcervejaria local, mas acabei declinando. Voltei ao hotel com um cansaço pesado, mas ainda eram oito e pouco da noite. Encomendei pela internet um sanduíche de um lugar chamado Jimmy John's. Capotei às dez e pouco e só acordei às seis da manhã.O café da manhã no Hotel Blue não tinha nenhum destaque. As opções eram o café de máquina (ruim, mas em compensação disponível o dia inteiro como os chás, sucos e cookies) e uma garrafa térmica com "café Starbucks" (regular). Sucos, pães, aquele iogurte com sabor de fruta sintética, etc. Uma TV gigante com o noticiário, focado principalmente na disputa pela presidência estadunidense.Fui outra vez caminhando até o Museu de Albuquerque. Sol batendo forte. Me arrependi de não ter levado um chapéu. A cidade parecia vazia durante o dia também. Passei por duas escolas no caminho: uma parecia ter uma maioria de alunos latinos, a outra com crianças mais branquinhas e lourinhas. Na praça do centro histórico, uma bandinha de música mexicana parecia ensaiar para um casamento. Encontrei alguns pés floridos de lavanda, e em uma cerca topei com uvas pequenas e doces.Cheguei para assistir ao painel sobre "Econotopias". Falariam Jaromil (sobre Bitcoin e Dyndy), Caroline Woolard (sobre a iniciativa Ourgoods) e Ted Howard (cooperativas Evergreen). Jaromil mencionou Marx, que apesar de fazer todo sentido para falar sobre valor e troca, soou algo estranho naquele lugar do mundo. Pensei sentir um incômodo no casal ao meu lado, mas pode ter sido mera impressão.Jaromil fez uma crítica clara e contundente à sociedade atual, na qual "os humanos são o meio, e o objeto é o dinheiro". Descreveu o sistema financeiro como uma máquina complexa para representar afeto, valores, interesses e natureza em um jogo abstrato. Apresentou o Bitcoin, não sem criticar a dependência que a extração de coins tem de computadores poderosos - mas relativizou essa dependência, em comparação à dependência institucional de segurança das moedas nacionais. Posicionou o Bitcoin, ecoando o Chaos Computer Club, como exemplo de rede que resiste aos poderes centralizados/centralizadores.Caroline Woolard apresentou o Ourgoods, que propõe uma economia de escambo para produtores culturais. Depreendi dali uma lógica de classificados, que lembrava o Bank of Common Knowledge do pessoal do Platoniq em Barcelona. Senti um aprisionamento forte ao mundo do espetáculo, ou à lógica do microespetáculo. Usava um monte de palavras corretas e aceitáveis nos dias de hoje. Construir uma cultura de cooperação. A economia não produz somente bens e serviços, também nos produz. Citou Paulo Freire - ação sem reflexão é cega, reflexão sem ação é impotente (traduzindo da tradução, posso ter perdido algo por aí).Ted Howard veio contar sobre suas experiências incubando cooperativas nos EUA. Segundo o programa do ISEA, ele foi considerado em algum lugar como um dos "25 visionários que vão mudar o mundo". Ele fala bem, tem aquela postura profissional que só quem leva muito sério a própria pessoa consegue ter. Profissional ao extremo. Falou sobre a crescente disparidade social nos EUA. Citou estatísticas. Falou que o país tem 100 milhões de pessoas que podem ser consideradas pobres. Falou sobre a (sempre citada) cooperativa de Mondragon no País Basco. Descreveu sua estratégia para criar cooperativas nos EUA: encontrar uma instituição-âncora, criar um negócio cooperativo com a comunidade, crescer, conectar-se a setores em expansão, garantir financiamento. Era um discurso bem ensaiado e totalmente positivo, dentro de uma lógica específica. Mas tudo se resumia a criar novas maneiras de o cidadão comum estadunidense garantir seu emprego e continuar produzindo com menos intermediários (e mantendo seu padrão de vida, comprando seu 6-pack de Budweiser, comendo comida gordurosa e assistindo TV deitado no sofá).Ao fim da apresentação de Ted Howard, um autoproclamado cientista mexicano o acusou de ingenuidade, ou de não estar falando a sério. Howard não discutiu. Jaromil pegou o microfone e sugeriu que cada povo precisa encontrar sua própria resposta. Naquele país, segundo ele, o contexto é diferente de lugares que foram colonizados. É necessário encontrar soluções autodeterminadas. Para Jaromil, nos EUA o capitalismo é visto como uma coisa boa, então eles precisam referir-se ao passado. Mas existiria algo comum entre os três projetos apresentados no painel - eles apontam para um futuro que se opõe à tendência política corrente, de austeridade como solução para as crises econômicas.Outro senhor sugeriu a necessidade de criar um futuro novo e imprevisível. Jaromil argumentou que existe uma falha recorrente nas economias alternativas: tentar quantificar relacionamentos. Howard falou que é muito difícil pensar "além do capitalismo". Se você não gosta do socialismo de estado e não quer o capitalismo corporativo, o que pode fazer? Falou que nos EUA existe a impressão de que o capitalismo foi um presente enviado por deus. Meses depois, enquanto escrevo esse relato, acabei de terminar de ler o Futuros Imaginários de Richard Barbrook. E vem à minha mente a imagem do "marxismo sem Marx" que teria sido forjado nos EUA ao longo do século XX (junto à "cibernética sem Wiener" e ao "mcluhanismo sem McLuhan").Desde a apresentação de Howard, passando pela intervenção do mexicano e até o fim da conversa, me atravessava uma sensação: eles não vão entender. É um sistema no qual todo discurso libertário já é automaticamente capturado ou enquadrado pelo mercado. Não existe saída naquele contexto. Me senti mais um peixe fora do aquário (mas a sensação não era nova).Voltei ao hotel a pé, para descobrir se meu computador havia chegado. Nada. Já estava ficando preocupado: ele deveria estar no hotel um dia antes da minha chegada aos EUA. No caminho havia parado em um 7-11 para comprar cervejas e comida, mas não consegui (não lembro bem por quê - acho que estava sem meu passaporte ou havia esquecido o cartão). Fui dar uma volta perto da estação de trem, buscando alguma coisa para comer. Parei em um mexicano, peguei um burrito e um refrigerante gigantesco. Saí outra vez a pé. No caminho encontrei um caminhão da Fedex e perguntei ao motorista se era normal atrasar uma encomenda. O rapaz falou que não. Continuei até o hotel Albuquerque. Visitei o estande de uma editora, conversei com um engenheiro da Intel (que confessou que ia esperar até a chegada da segunda geração de Ultrabooks para ficar com um). Peguei um trecho da mesa "Authorlessness", interessante mas sem muita novidade. Um casamento acontecia no jardim do hotel.Voltei ao Museu de Albuquerque, mas não encontrei ninguém. Aproveitando o wifi livre, encontrei pelo celular uma loja que alugava bicicletas. Caminhei até lá, debaixo de sol e calor, sonhando em pedalar e tomar vento na cara. Desisti ao saber do preço, 35 dólares por dia. Continuei andando em direção ao hotel e em uma esquina encontrei alguns conhecidos, que saíam de um debate sobre "economias alternativas" no Harwood Art Center. Segui o pessoal até um bar meio metido (não sem antes passarmos por um drive-thru de caixa eletrônico de banco, que deixou os europeus do grupo surpresos: "as pessoas não saem do carro nem para sacar dinheiro?"). No bar, conversamos em grupos até que um habitante de San Francisco (e lá isso tem um monte de significados adjacentes - meio hippie, meio de esquerda, simpático, tranquilo) sugeriu uma rodada geral de apresentações. Falei um pouco sobre o que estava fazendo ali, mas a sensação de estar em uma dinâmica de grupo (planejada, controlada, analisada) me espantou.Voltei ao hotel para preparar minha apresentação para o painel da manhã de sábado. Liguei para a empresa que vendeu meu laptop, descobri que ao contrário do que eu havia requisitado - e pago -, eles não haviam enviado a encomenda por remessa expressa. Ela deveria estar no meio dos EUA, pelo correio comum. Chegaria na segunda-feira, a tempo de me encontrar no hotel, mas já depois das minhas duas apresentações. Recebi de volta o valor da entrega, e foi tudo que consegui. Teria que usar um dos computadores do lobby. Tentei subir o sistema do meu HD externo conectado via USB, mas não funcionou. Acabei usando o OpenOffice.org para Windows do computador do hotel. No processo, acabei perdendo a noite de Gala do ISEA. Mas consegui preparar a apresentação para a manhã seguinte. Depois saí, dei uma volta pelo centro, sondei alguns bares mas não tive vontade de entrar e beber sozinho. Voltei ao hotel e pedi outro sanduíche do mesmo lugar.