A ideia de cidade

Raquel Rolnik, no Cidade Luz:

Agora, o conceito das Gardens City’s, das Cidades Jardins, é um conceito inglês do final do século XIX, do Raymond Unwin. Qual era a discussão em plena Londres post-east-end? A cidade tinha virado uma muvuca com a industrialização, então o conceito foi uma utopia da cidade voltar a ser um espaço equilibrado, com jardins, mas pensando como bairro operário; a idéia dos bairros Jardins era um modelo urbanístico para os operários, ao contrário de ficar todo mundo no esgoto, em casas sem luz nem ar, que era a realidade naquele momento. Só que aqui virou um produto de luxo. E se você olhar como modelo urbanístico é muito legal, a não ser como aconteceu aqui, que o conceito virou residencial unifamiliar e de altíssima renda, terrenos grandes, e isso se fez através da regulação urbanística.

Bom pra retomar uma questão que me bateu ano passado durante o mobilefest:

Imaginar a cidade que a gente quer para o futuro não pode se limitar a olhar o modelo mental de cidade que a gente tem hoje e ver o que falta. Precisamos reinventar o próprio conceito de cidade, e pensar em como a cidade pode ser modelada para facilitar o que precisa ser facilitado nessa nova vida e nesses novos fluxos de comunicação. Não é só internet de graça pra todo mundo, é pensar as conseqüências dessa hiperconexão no deslocamento, educação, saúde, trabalho, entretenimento e tudo mais. A gente ainda nem arranhou a superfície do assunto.

Quero dizer: e se a gente se propuser a realmente ir fundo no processo de desconstruir a própria idéia de cidade pra tentar começar uma coisa nova? Desurbe?

(atualizando) E ainda Raquel Rolnik:

[Raquel] Todo mundo vai na Rua 25 de Março comprar coisa pirata, é público, é notório, isso abastece a pirataria nacional, mas permanentemente tem um espetáculo de afirmação de que aquilo é ilegal.
PI – Hipocrisia.
Raquel – Não é hipocrisia, eu acho que é mais grave. O pressuposto da hipocrisia é que você sabe que está fazendo uma representação teatral. A Ângela Gomes escreveu isto num texto, eu estou com isso na cabeça, pois justamente estou escrevendo sobre isto; ela fala que é a ambiguidade constitutiva. A gente precisa do legal e do ilegal, isso faz parte da cultura política, da relação que a gente tem com a lei. Esse modelo republicano de democracia que foi montado na Europa por aquela sociedade, para aquela sociedade, quando vai ser exportado para o mundo, como que ele chega na América Latina? Como isso é implantado aqui? Como ele é implantado na África? Como é a relação com o que tem lá? Como ele chega na Ásia, na relação com o que tem lá? Vai sendo absorvido e transformado pelos modos de funcionamento locais. Então, aqui tem mesmo uma tensão permanente entre o legal e o ilegal. Não se constituiu no Brasil a idéia, a noção de que você tem uma lei, uma norma que foi fruto de um pacto social e que, portanto, ela tem que ser implementada em nome deste pacto. Porque nunca teve pacto! Sempre foi meia dúzia. Meia dúzia e o resto vai se virando. E todo mundo usa a lei ou a não-lei dependendo das circunstâncias, o próprio Estado. Por que o Estado tolera a autoconstrução, a irregularidade, a ilegalidade? Porque sabe que pra manter concentrada a renda e o poder, este é o jeito.

(atualizando, de novo!) mais um pedacinho:

PI – Interessante pensar nessa força contrária aparecendo com estes grandes lançamentos imobiliários do momento, as moradias “4 em 1”, o Parque Cidade Jardim e Villa Lobos.
Raquel – Viva num shopping! Esse modelo é uma outra conversa, que vale a pena fazer um projeto só para falar disso. Eu acho que esse modelo é a coisa mais grave que está acontecendo do ponto de vista político, ele acaba com a idéia de cidade, rompe de vez. A elite no Brasil foi mais ou menos cuidando dos pobres porque precisava de mão-de-obra, então aquele mínimo foi permitindo que acontecesse, em termos de contribuir para uma construção da dimensão pública. Com esse modelo de segregação total e absoluta, vem a idéia de ruptura em contribuir para uma dimensão pública da qual todos participem, e o problema é que esse modelo não está só no Brasil, não está só em São Paulo, você vai ver na Índia o que está acontecendo, exatamente a mesma coisa; na China não, mas nos lugares mais emergentes como o Brasil este é o modelo. Acaba com a idéia da publicidade da cidade, e acabando com a idéia de publicidade, para mim, acaba com a idéia de cidade, e aí a gente vai estar diante de uma nova territorialização da humanidade, pós-cidade, depois de 3 mil, 4 mil anos de experiência de construção de cidade, que era a forma por excelência, de construção de uma dimensão pública densa. Eu morro de medo disso, é muito sério.