Escrevi esse texto no fim de 2006 pra Brazine, uma revista bilíngüe que circula na Alemanha, Suíça e Áustria. Encontrei ele perdido numa pasta aqui. Não tem muita novidade (já tem uns sete anos que eu só me repito), mas republico aqui pelo registro mesmo.
Nos últimos anos, uma grande diversidade de projetos do terceiro setor e diferentes instâncias do governo têm se concentrado na questão da exclusão digital como obstáculo fundamental para um salto qualitativo em termos educacionais, sociais e econômicos no Brasil. Se começaram com premissas bastante limitadas, como o simples fornecimento de computadores para populações periféricas - e pouca preocupação sobre todo o contexto que cerca a chegada dessa tecnologia -, alguns desses projetos têm evoluído para uma perspectiva mais abrangente. São ações que buscam promover uma visão mais ampla da tecnologia. Certamente, a influência do movimento do software livre nesses projetos foi fundamental, mostrando na prática que aspectos como a produção colaborativa, a coletividade, o remix, a criação de comunidades de intercâmbio de conhecimento são alternativas viáveis tanto em termos metodológicos como econômicos. Nesse sentido, e seguindo a própria evolução da tecnologia - de "páginas" na internet para sistemas integrados de relacionamento e publicação coletiva - começaram a ser desenvolvidos projetos de tecnologia social e educação que se opunham tanto à visão assistencialista típica das décadas passadas quanto a uma certa influência de uma cultura individualista, que põe a competição como fator preponderante dos tempos atuais e elege o dinheiro, o consumo e a ostentação como ideais não-declarados. Passou a emergir uma visão em que a atuação individual é interdependente do coletivo, e em que o conhecimento é construído de maneira coletiva e participativa. Chega a parecer óbvio, mas há poucos anos não era. A ilusão de empregabilidade (como se saber usar um computador garantisse uma vaga em um cenário em que "emprego" é a sombra de um reflexo) era palavra de ordem nesses primeiros projetos. O fato realmente notável foi que, com o tempo, esses projetos passaram a defender conceitualmente alguns traços que historicamente já fazem parte da formação cultural brasileira.
Muito do que hoje entendemos como cultura brasileira, ou então o que há de comum às diferentes culturas brasileiras, tem uma base muito mais colaborativa, dinâmica e coletiva do que costumamos perceber. Um olhar abrangente para os lados nos dias de hoje só confirma essa idéia. Sem deixar de lado todos os abusos, violência e exploração, o Brasil viu desde sempre uma grande mistura das culturas portuguesa, negra e indígena, e depois ainda mais com outras correntes migratórias da Europa. Alguns exemplos são elucidativos:
- Correndo o risco de ser superficial demais, a antropofagia da Semana de 22 pode ser entendida como um grande movimento de remix: pegando referências estabelecidas e consolidadas da cultura européia, desconstruindo-as e adaptando-as ao que havia de culturas tradicionais no Brasil, criando assim novas referências culturais prontas para mais transformações e remixagens.
- A Umbanda também tem características que em muito se assemelham ao movimento de software livre: mistura uma série de referências culturais (sincretismo religioso de rituais ancestrais africanos sincretizando com a liturgia católica, e ainda sofrendo influências desde Kardec até o Budismo tibetano), se desenvolve de maneira descentralizada e se transforma em cada contexto local. Nunca contou com uma autoridade central que definisse as diretrizes dogmáticas, e seus rituais, liturgia e cosmogonias estão em constante transformação.
- Outros momentos importantes da nossa formação cultural, como a tropicália e o manguebit, também comungaram dessa facilidade em absorver e reinterpretar referências culturais, chegando a um ponto em que nem se reconhece mais o que vem de fora e o que foi feito aqui mesmo. Somos integrados à cultura mundial, e sempre aparecemos como elemento inovador. Que o diga a Bossa Nova, que transformou o jazz.
Várias outras particularidades podem ainda ser mencionadas: o grau de informalidade da economia brasileira (quem falou que isso é tão ruim?), o trabalho voluntário nas escolas de samba, a feijoada com a galera pra construir o quarto da filha. Mas quero falar especificamente de dois traços marcantes: o mutirão e a gambiarra.
Engraçado ver que ambientes geridos coletivamente, como centros comunitários, residências super-habitadas e tantos outros, podem até chegar a um ponto de desleixo e falta de cuidado que atrapalham muito. Mas se alguém sugere um mutirão, tudo se transforma. Existe quase uma obrigação moral a colaborar. Mesmo quem inventa uma desculpa pra se ausentar acaba sentido-se culpado depois de ver os resultados. O mutirão é um conceito entendido em todo o país.
Gambiarra, segundo os dicionários, é uma extensão elétrica com um soquete de lâmpada na ponta. Na prática, pode significar qualquer tipo de adaptação informal, geralmente feita com baixo custo para cobrir um imprevisto. Não que seja provisória - muitas vezes, como a gambiarra funciona, ela acaba permanecendo por anos. Existem casos de gambiarras feitas para resolver os problemas causados por outras gambiarras. Mas a gambiarra é a consolidação de uma criatividade que, se não nos é exclusiva, acaba por ser quase proverbial: a gambiarra como otimização criativa, maneira de extrair o máximo de recursos escassos.
A grande pergunta a se fazer é: com todo esse repertório de cultura colaborativa, de remix, de ação coletiva, e contando com as figuras presentes do mutirão e da gambiarra, como é que se dá a apropriação brasileira das novas tecnologias de informação e comunicação?
Com o passar do tempo, algumas respostas começam a emergir. Desde que o software livre se tornou assunto sério em projetos sociais, no fim de 2002, diversas iniciativas deram exemplos excelentes de como a inventividade tipicamente brasileira pode se valer das possibilidades das novas tecnologias. Ao contrário do que defendem algumas lideranças da chamada sociedade civil organizada (que já teve sua própria existência questionada por pesquisadores como Bernardo Sorj), o jeitinho brasileiro não precisa se enquadrar no que é tido como o empreendedorismo "correto". Muito pelo contrário, o que aparece como grande oportunidade é atualizar a gambiarra e o mutirão com os horizontes que as novas tecnologias abrem, e tomar nossas particularidades como trunfo. A popularidade - excessiva, defendem alguns - do que pode ser chamado de "software social" no Brasil pode não ser somente uma moda ou reflexo de uma hipotética superficialidade cultural, mas um traço essencial, que deve ser entendido e apropriado. Em outras palavras, o fato de os brasileiros que já acessam a internet ficarem mais tempo online do que qualquer outro povo, geralmente usando ferramentas como fotologs, weblogs, messengers ou o orkut não é necessariamente uma desvantagem. Só precisamos é de uma compreensão mais aprofundada do que isso significa, e propor soluções que levem isso em conta.
Alguns exemplos começam a surgir, conectando o mundo institucional e os circuitos alternativos. Alguns movimentos que, antes de tentar esconder sua matriz cultural e adaptar-se ao que o mundo espera deles, batem pé e se orgulham da herança antropofágica e remixada que nos é oferecida, e com todos os conflitos, atritos e problemas que surgem no caminho, insistem na consolidação de um jeito brasileiro de entender, usar e transformar as tecnologias de informação e comunicação. O tempo dirá se essa perspectiva está correta.