Sempre fui cyberpunk

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Uso óculos escuros espelhados, até em lugares fechados. Visto um sobretudo Chesterfield de lã. Trabalho numa sala abarrotada de computadores vintage, com iluminação no chão. Não me amoldo aos padrões de consumo e de estilo de vida promovidos pela mídia de massa. Acredito na fantasia utópica de indivíduos digitalmente conectados subvertendo o sistema mediante aplicação criativa da tecnologia. Não adianta. Por datado e ingênuo que isso tudo possa soar... não tem jeito: lá no fundo, ainda sou um cyberpunk: High Tech + Low Life.

A coisa mais cyberpunk que o público leigo conhece é a série de filmes "Matrix". Especialmente o primeiro. Intrigado pela premissa no trailer, repeti-o até furar o HD. Vi a película no cinema, fiz vista grossa às falhas, adorei ilimitadamente o que vi e, mesmo gostando bem menos das continuações, comprei tudo em DVD, mais o Animatrix. Meu screensaver no Mac, o Red Pill, era uma simulação esplendorosa do efeito de caracteres caindo, naquele visual verde-sobre-preto que citava diretamente os monitores de DOS do meu tempo de fuçador.


Por fim, em 2003, escrevi para a revista Herói da Conrad um ensaio onde pescava todos os ganchos filosóficos de "Matrix" que consegui identificar com a filosofia Zen-Budista:


Alguém melhor equipado de audácia fez algo parecido na forma de livro e deve ter ganhado quase tanto dinheiro quanto os múltiplos charlatães que pegaram carona em "O Código Da Vinci", anos depois.

Mas cyberpunk não é "Matrix" especificamente, nem tampouco o magnífico precursor "Blade Runner", nem os outros filmes baseados em livros de Philip K. Dick (como "Minority Report" e "O Homem Duplo"). Este era um escritor à frente do seu tempo, que tocou em vários temas caros aos cyberpunks. Mas não pertencia à mesma turma de Bruce Sterling, William Gibson, Rudy Rucker; uma geração mais jovem, que criou para si mesma o rótulo cyberpunk para indicar que pretendia revolucionar a ficção, e teve a empáfia de declarar-se como Movimento literário, com M maiúsculo, na seminal coletânea de contos "Mirrorshades", compilada por Sterling em 1986-88.

Se o cyberpunk tinha o potencial para ser tão poderoso como literatura, por que ele só rendeu filmes medíocres, enquanto os reais pilares do gênero no cinema ("Blade Runner" e "Matrix") vieram de fora do Movimento?


Quando era garoto, vi "Blade Runner" em VHS, fiquei fascinado e me deprimi ao constatar a ausência de qualquer outra coisa similar no mainstream cultural. Parecia-me que "Blade Runner" era a única obra que tocava de forma até poética em vários assuntos centrais e assustadores da sociedade tecnológica, especialmente a inevitável dificuldade de qualificar existencialmente um ser humano total ou parcialmente artificial. Queria mergulhar no tema, mas não sabia por onde.


"Tron", que é da mesma época de "Blade Runner", poderia ser rotulado como cyberpunk? Lá estavam todos os ingredientes: ciberespaço, corporação do mal, inteligência artificial descontrolada, um hacker humano que salva o dia. A trilha sonora de Wendy Carlos, pioneira dos sintetizadores, era tão inovadora quanto o visual em CG. Mas a linguagem é a de uma "aventura para toda a família"; o filme servia como propaganda para videogames; e foi produzido pela Disney. Na trave!


"Hackers" é um filme cyberpunk? Novamente, todos os temas estão ali; há até mesmo o tal ciberespaço e adolescentes domando corporações do mal com modems e Macintoshes. Mas a única razão para rever esse filme após tanto tempo é conferir a beleza estalando de nova de Angelina, a filha de Marcheline. Todo o resto envelheceu muito mal.


"Matrix" poderia ser o filme cyberpunk perfeito, mas peca pelas concessões vagabundas à linguagem dos roteiros de quadrinhos de super-heróis. De fato, seus autores não eram escritores cyberpunks, mas roteiristas de quadrinhos de super-heróis.

O cyberpunk autêntico é um mundo distópico, onde a tecnologia criou novos problemas sociais em vez de resolvê-los. O herói solitário que se vira por entre as brechas do sistema não é um simples fora-da-lei. Ele tem o espírito dos detetives da ficção noir. Ele se guia pela ética dos hackers – de quando essa palavra, hacker, significava expert na subcultura da informática e não um bandido pirata de dados.

Na literatura cyberpunk, o futuro não é distante, não há aliens invasores, não acontecem guerras entre mundos, inexistem buracos no espaço-tempo nem a matéria-prima da ficção científica mainstream que muita gente mais nova acha circense e caricata, cafona, às vezes inconscientemente retrô, até um pouco repulsiva. A ficção científica tradicional dá espaço (sem trocadilho) à discussão dos problemas humanos usando ambientes alegóricos de civilizações seguramente afastadas e em outras épocas, frequentemente em tons épicos. Para o mesmo fim, a frenética e fragmentada narrativa cyberpunk tem um ponto de vista oposto: é individualista e autorreferente, com personagens inquietos em permanente busca da redefinição da sua identidade pessoal. Traços marcantes também na cultura internética que surgiu no seu rastro.

Em "Snow Crash" de Neal Stephenson, e também nos livros de Gibson e Sterling – dois autores sortudos, que ironicamente nunca entenderam nada sobre computação, mas falam extensamente sobre o assunto, na maior cara de pau – há um conceito de "rede de dados global" fascinante, assim como um "ciberespaço" convincente. Algo como um Second Life que presta. A nossa Internet atual ainda está longe de envolver outros sentidos além da visão e audição e escapar dos limites do monitor do PC para viver em interfaces neuronais e enlouquecer todo mundo. Mas com o pouco que oferece, a rede global de informação já emergiu como a nova droga central do século.

Com a perspectiva de estender o envolvimento da ciberesfera para algo mais integrado à nossa biologia, toca-se em outro tema básico do cyberpunk: as modificações corporais e mentais. O hype do momento é realidade aumentada, certo? Pois se não envolver um implantezinho neurológico que seja, não é emocionante, meu caro. Um dos primeiros contos do gênero, de Tom Maddox, fala de um aviador militar que tem a mente sequestrada pela interface de controle da aeronave, meses depois de dispensado do serviço. Em "Snow Crash", pessoas consomem drogas dentro do ciberespaço e sentem efeitos físicos no mundo real. Aí sim.

Num livro que Gibson e Sterling escreveram juntos, "The Difference Engine", a revolução da informática acontece um século adiantada, em plena Era Vitoriana. Não é apenas cyberpunk: é steampunk. A premissa tem implicações interessantes, mas o romance é contaminado por um estilo narrativo rebuscado e cansativo, praga geral da ficção científica pós-moderna.


Anime, quadrinhos e zines


No Japão as coisas sempre são mais extremas. Katsuhiro Otomo (do monumental "Akira", além de "Metropolis" e "Steamboy") e Masamune Shirow ("Ghost In The Shell" e "Appleseed") são dois desenhistas-roteiristas que exploraram o cyberpunk até a última consequência lógica. Especialmente o segundo, cujos quadrinhos são muito mais bonitos que os filmes animados neles baseados (e influenciaram diretamente "Matrix"). Na melhor tradição nerd otaku, Shirow explica e reexplica incansavelmente as tecnologias que inventa e desenha até o mais insignificante detalhe – sempre que possível, em quase obscena simbiose corpórea e mental com heroínas voluptuosas.

Na verdade, a ficção cyberpunk japonesa, entre mangá, anime e videogames, é tão vibrante e vasta que, se fosse para comentar nomes e obras, eu teria que dobrar o tamanho deste ensaio. Gibson acha que o Japão é o próprio cyberpunk vivendo à luz do dia, na forma de cultura de massa cotidiana, e não há como discordar. Nenhum outro povo adotou a cibernética com tanta naturalidade.

Quando eu ainda era um pirralho sem suficiente noção de que as coisas no mundo da arte são difíceis de realizar, tentei desenhar uma série de quadrinhos. E embora não tivesse ainda ouvido falar em cyberpunk, a minha história encaixava-se solidamente dentro do gênero. O trabalho tinha o nome provisório, mas jamais substituído, de "New Agers" – mesmo sabendo eu que um nome desses evocaria baladas instrumentais da Enya e fabricantes de velas artesanais com suaves propriedades curativas, em vez de um grupo de rebeldes dotados de capacidades especiais via próteses nucleares, mutações provocadas e outras invenções supertecnológicas, lutando contra uma corporação do Mal que tentara criar uma neo-raça humana artificial via manipulação biológica, com efeitos inesperadamente catastróficos sobre si mesma ao perder o controle sobre o experimento eugenético.

Sim, já fizeram dezenas de mangás que exploram essa premissa, a começar pelo grandioso "Akira" de Otomo. Mas perdoe-me por não saber na época que eles já existiam. Descobrir qualquer coisa fora do mainstream era bem mais difícil que hoje. Desenhei character sheets, digitei roteiros, fiz storyboards de páginas; enfim, cheguei muito perto de efetivamente criar o quadrinho. Mas nunca fiquei satisfeito. Não mostrei o resultado a ninguém além dos amigos mais chegados. Tudo isso está guardado até hoje numa pasta de projetos congelados.


Revistas


Alimento para nossas mentes metidas a visionárias era fornecido pela revista Wired, antes de ser comprada pela Condé Nast e ser transformada numa espécie de Bravo gringa. Talvez pareça impossível de crer agora, mas a Wired dos primeiros 7 anos trazia temas revolucionários e contestadores, mês após mês. Antes dela houve a Mondo 2000, uma revista ainda mais assumidamente cyber. Esta falava insistentemente de conceitos que julgava fundamentais para a nova era, mas até hoje não avançaram muito, como tecnomisticismo e wetware.

E antes de ambas, havia a venerável Omni, publicada pela mesma editora da Penthouse e da qual ainda preservo uma coleção. Omni adorava falar de astronáutica e futurismo especulativo em geral, quase não se importava com a informática. Mas foi nela que estreou o conto "Neuromancer" de Gibson. A nacional Galileu, com seu novo enfoque mais próximo da Wired, incidentalmente lembra um pouco a Omni.

Na primeira fase da revista Macmania vinha encartado um suplemento de humor, um zine de quatro páginas chamado Macintóshico. Na verdade, o zine precedera a revista. Ele tinha pauta livre e era coletivo; mas com o tempo cada edição ficou por conta de apenas um artista. (Um dos meus Macintóshicos foi convertido em HTML e publicado aqui.) Olhando em retrospecto, vários Macintóshicos tinham temas assumidamente cyberpunks, especialmente os do Tom B e do MZK. São meus favoritos desde sempre. Naquela altura da informática, no tempo dos BBS, newsgroups e IRCs, dos modems de 14400 baud e dos GIFs animados de 32 cores, mexer com todas essas coisas era inconcebivelmente radical e intelectualmente estimulante. Nada a ver com o oceano de banalidade humana que caracteriza a Web-convertida-em-televisão-interativa dos dias atuais.

Baixe daqui os Macintóshicos com temática cyberpunk e associada em PDF:



14 - O. S. Wars (abril de 1995) - Heinar, MZK, Tony


15 - Zinderkitsch (maio de 1995) - MZK


16 - 2026 (junho de 1995) - Tom B


18 - Exu Tranca Rede (agosto de 1995) - Tom B


20 - Explode Conexão (novembro de 1995) - Heinar, Tony


21 - Uaired (dezembro de 1995) - Heinar, Tony


22 - Mystery Action (janeiro de 1996) - MZK


31 - A Entrevista (novembro de 1996) - Tony



Música

Na música, é lugar-comum chamar de cyberpunk o trabalho de bandas como Kraftwerk e Yellow Magic Orchestra. Também houve o incompreendido disco do Billy Idol. Mas nos anos 90 também ouvi muito protoindustrial e electropop europeus, sons obscuros que me soavam muito mais "corretos". Particularmente impressionante é um álbum do grupo sueco Twice A Man, de 1993, "Fungus and Sponge", onde além do clima pesado, há letras que evocam diretamente o mundo gibsoniano. Era um mundo perturbador, mas eu sonhava com ele.

A estreia de "Matrix", o filme mais cyberpunk de todos, ironicamente marcou o ocaso do gênero cultural que incitou as mentes de tantos pioneiros da grande rede.