A questão racial brasileira e a ansiedade gringa

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A Palgrave, prestigiosa editora acadêmica de Nova York, que nos últimos anos publicou verdadeiras obras-primas, além de volumes escritos por lideranças de destaque em suas disciplinas, já havia tido uma decaída publicando livros de blogueiros atleticanos. Mas neste ano de 2008, a editora cometeu um atentado ecológico que é de tema relacionado aos discutidos neste blog, razão pela qual eu rompo hoje o hábito de jamais publicar resenhas de livros acadêmicos aqui. O atentado se intitula White Negritude: Race, Writing, and Brazilian Cultural Identity e a autora se chama Alexandra Isfahani-Hammond. Nunca a vi na vida e não lhe desejo mal.

Romper o costume de não resenhar livros acadêmicos (correndo o risco de prejudicar no blog a carreira de alguém) foi decisão difícil, mas ela se baseou num fato: pela primeira vez, eu li um livro de gringo sobre o Brasil – e olha que eu já li besteira escrita por gringo sobre o Brasil – em que eu genuinamente não sabia: 1) se a autora é completamente analfabeta em cultura brasileira e língua portuguesa ou 2) se a autora escreve de má fé. Juro sobre o manto alvi-negro que a dúvida é genuína.

O livro é sobre Gilberto Freyre, Jorge de Lima e Joaquim Nabuco. Ela ignora não só esses três, mas todos os outros que cita. Como diria Macedonio Fernández, faltou tanta coisa no livro que não cabia mais nada. Comecemos pela página 6, onde ela comenta um artigo de Hermano Vianna. O que está em inglês é dela, o que está em português é Vianna:

Vianna observes that it was not easy 'inventar esse orgulho de ser mestiço no Brasil' in face of eugenic theories to which 'o pensamento brasileiro corajosamente tentou dizer o oposto: que misturar diferenças é bom'. He adverts that this tradition should not be abandoned in favor of identity politics, attributing to Racial Democracy a quasi-messianic potential: 'uma experiência única de valorização da mestiçagem, que não foi levada ainda às suas últimas libertárias conseqüências'.

A autora atribui a Hermano a crença “quase-messiânica na democracia racial” por causa da frase acima sobre a mestiçagem, em que Hermano, justamente, afirma que a mestiçagem, que não é a democracia racial, evidentemente, não foi levada às suas conseqüências mais libertárias.

Por que ensaístas brasileiros como Hermano Vianna, Antonio Risério (e, desta vez, vou ser imodesto e me incluir, principiante, nesta lista) continuamos a escrever a palavra mestiçagem e os gringos que se dedicam a estudar raça no Brasil continuam traduzindo-a como racial democracy? É imbecilidade ou é má fé? Professora, a Sra. fingiu que Hermano escreveu “democracia racial” ao invés de “mestiçagem” ou a Sra. acha que as duas coisas são sinônimas? Não deu para entender.

Continuemos com o mais catastrófico livro gringo sobre o Brasil que este blogueiro leu na última década. A parte sobre Gilberto Freyre é pior. Para que vocês tenham uma idéia: a figura traduz “mestiço” como “white”. Sim, sem mais nem menos, a palavra “mestiço” passa a significar “branco”. E com base nessa tradução monstruosa, logo depois, a autora acusa Gilberto Freyre de “apagar” [erase] o mestiço da cultura brasileira! Freyre pode ser acusado até de ser flamenguista. Mas de excluir o mestiço?

Sigo citando para que ninguém ache que invento. Página 74, onde ela alude a Freyre falando do troca-troca entre o sinhozinho e o muleque: troca troca as a symbol for the transmission of identity reflects an instability Freyre compensates for by insisting upon the inability of socioeconomically identified 'African descendants' to imitate or absorb whiteness.

Eu desafio a professora a me mostrar uma linha de Gilberto Freyre, escrita nos anos 30, 40, 50, 60, 70 ou 80 em que Freyre afirme ou sugira que afro-descendentes são 'incapazes' (inability) de imitar ou absorver qualquer coisa da cultura branca, européia, euro-brasileira, senhorial, patriarcal, luso-colonizadora ou o que seja (assim como esta, claro, também deles absorveu). Sobre essa bobagem, fiquemos por aqui, porque é longo o festival de atrocidades que a autora nos proporciona.

Num ato de suprema má fé, o livro se propõe a falar de “raça” e “cultura e identidade brasileira” numa língua em que desapareceram os vocábulos mestiço, mulato, cafuzo, mameluco, índio, mulato claro, escuro, bombom e caboclo. Como uma espécie de carimbadora racial SS, a autora divide os brasileiros entre “brancos” e “negros” e começa a falar do poeta alagoano Jorge de Lima como um branco sufocando e apropriando-se da voz da Nega Fulô. É sujeito branco pra lá, voz branca pra cá. Mas Jorge de Lima não é branco assim sem mais nem menos.

“Pode ser” branco, vestindo terno, circulando com poder num determinado ambiente. Muito especialmente num estado mais negro, como a Bahia. Vestindo camisa rasgada, de chinelo, com essa cabeça de cearense e esse nariz afro-mestiço, ele pode, muito bem, deixar de ser branco rapidinho, especialmente em São Paulo ou Rio Grande do Sul, digamos.

A julgar pelo livro que escreveu, a professora é incapaz de entender o dito no parágrafo anterior.

Num gesto de imensa ignorância e arrogância, a autora vai distribuindo rótulos de “branco” e “negro” e interpretando textos brasileiros sem entender o mais básico dessas sutilezas: que definir Jorge de Lima como “um poeta branco” não é tão simples assim. Acusar sua poesia de ser feita para “apropriar-se” da voz da mulata para um projeto “eurocêntrico” parece-me, sinceramente, um delírio. É possível fazer uma leitura feminista e / ou racial do poema de Jorge de Lima. Mas o que fez autora é um panfleto que está mais próximo à infâmia.

A difamação continua num capítulo sobre Gilberto Freyre, em que autora toma a valiosíssima pesquisa da brasileira Maria Lucia Pallares-Burke, sobre os albores da vida intelectual do pernambucano e, retalhando citações numa espécie de samba da loira doida, tenta desenterrar uma ou outra linha escrita na juventude de Freyre para justificar a idéia de que ele teria sido uma espécie de branco-supremacista, que alguma vez elogiou a Ku Klux Klan (pag. 125). Daí ela salta para as últimas décadas do Freyre vivo, salazarista e pró-militares, para dizer que era tudo uma coerência só, e que esse “intervalinho minúsculo pouco importante” de nomes Casa-Grande e Senzala, Sobrados e Mucambos e Ordem e Progresso – obras que a autora nunca estuda em seu livro -- não muda muito o quadro, pois afinal nele Freyre apaga negros e mestiços e promove uma visão eurocêntrica. Imagine alguém recortando citações para “provar” isso sem jamais ler nada desses três livros. Agora imagine que a pessoa erra na tradução dos termos mais básicos. Agora imagine que a figura tem uma agenda altamente panfletária, de total desrespeito pelo texto que “estuda”. É isso.

A grande qualidade do livro de Alexandra Isfahani-Hammond é que ele nunca é monótono. Em cada página há uma hecatombe. Na 132 ela se refere a Freyre's camouflaged biologism para sugerir, sim, é isso mesmo, que Freyre era um biologista. Todas aquelas centenas de parágrafos de Freyre que você já leu, dizendo que não é a “raça” nem a “biologia”, mas a história, a bagagem cultural, as trocas, as relações sociais etc. que serão o objeto do estudo? Lembra-se deles, leitor? Pois é, depois de traduzir “mestiço” por “branco” e “mestiçagem” por “democracia racial”, a autora nos diz que todos aqueles parágrafos eram uma “camuflagem” em que Freyre escondia seu secreto biologismo.

Voltando a falar do troca-troca, a autora alude a Freyre's paradigm for the unilateral, seignorial incorporation of black identity – and, by extension, for the unilateral capacity for the white to perceive and represent the black. De novo: eu desafio a autora a me mostrar uma linha de Freyre onde ele diga que é o branco que tem, unilateralmente, a capacidade de perceber e representar o outro. A autora não lê português, nunca leu Freyre ou age de má fé?

O monstruoso ato de condescendência racial que é sua leitura de um artigo de Marilene Felinto merece uma observação à parte. A situação da autora vai piorando consideravelmente, claro, porque Marilene é uma morena mulata brasileira que rejeita o rótulo “escritora negra” com que um certo ensaísmo gringo quer apropriá-la. Na Folha de 19 de março de 1995, Felinto escreve um artigo basicamente de apoio à visão freyreana da mestiçagem. É um texto lúcido (que não posso linkar mas que copiarei na caixa de comentários), em que Felinto se refere à visão freyreana dos colonizadores portugueses que se multiplicaram em filhos mestiços numerosos.

E não é que a Profa. Isfahani-Hammond traduz “mestiço” como “branco” de novo e diz que Felinto substitui a criança mulata pelo penetrador branco como produto híbrido do contato europeu / africano (pag. 73)? Para piorar a situação, ela não se limita a desler o artigo de Marilene como desleu a obra de Freyre. Ignorando que o artigo da Folha é, ora bolas, só uma coluna de resumo, e que a obra de Freyre é uma obra – que a autora não parece ter lido --, ela sugere que no fundo Felinto compreendeu mais que Freyre, porque afinal Felinto, mesmo sendo “apologista” de Freyre, tem outro “background” étnico, ou seja, é negra.

Sobre as atrocidades cometidas contra Joaquim Nabuco nesse livro, deixo que se pronuncie Alex Castro, que conhece Nabuco melhor que eu. As infâmias sobre Freyre que eu deixei de mencionar aqui encheriam outro longo post.

Que fique claro que o problema não é “detonar” e criticar o Brasil. O papel de um acadêmico é fazer isso mesmo. Não importa de onde seja o seu passaporte, você tem direito de se dedicar ao estudo de qualquer coisa, e ter sobre ela uma visão tão crítica quanto lhe pareça apropriado. Mas não pode ser desqualificador, beirando o difamatório, sobre seu objeto de estudo, especialmente se demonstra ignorância de seus aspectos mais básicos.