O Aleph do Machado
"O del�rio", s�timo cap�tulo das "Mem�rias P�stumas de Br�s Cubas". Dispon�vel em RTF no site.
"O del�rio
Que me conste, ainda ningu�m relatou o seu pr�prio del�rio; fa�o-o eu, e a ci�ncia mo agradecer�. Se o leitor n�o � dado � contempla��o destes fen�menos mentais, pode saltar o cap�tulo; v� direito � narra��o. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que � interessante saber o que se passou na minha cabe�a durante uns vinte a trinta minutos.
Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chin�s, bojudo, destro, escanhoando um mandarim, que me pagava o trabalho com belisc�es e confeitos: caprichos de mandarim.
Logo depois, senti-me transformado na Suma Teologica de S�o Tom�s, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; id�ia esta que me deu ao corpo a mais completa imobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as minhas m�os os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre, algu�m as descruzava (Virg�lia decerto), porque a atitude lhe dava a imagem de um defunto.
Ultimamente, restitu�do � forma humana, vi chegar um hipop�tamo, que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, n�o sei se por medo ou confian�a; mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrog�-lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino.
- Engana-se, replicou o animal, n�s vamos � origem dos s�culos.
Insinuei que deveria ser muit�ssimo longe; mas o hipop�tamo n�o me entendeu ou n�o me ouviu, se � que n�o fingiu uma dessas coisas; e, perguntando-lhe, visto que ele falava, se era descendente do cavalo de Aquiles ou da asna de Bala�o, retorquiu-me com um gesto peculiar a estes dois quadr�pedes: abanou as orelhas. Pela minha parte fechei os olhos e deixei-me ir � ventura. J� agora n�o se me d� de confessar que sentia umas tais ou quais c�cegas de curiosidade, por saber onde ficava a origem dos s�culos, se era t�o misteriosa como a origem do Nilo, e sobretudo se valia alguma coisa mais ou menos do que a consuma��o dos mesmos s�culos: reflex�es de c�rebro enfermo. Como ia de olhos fechados, n�o via o caminho; lembra-me s� que a sensa��o de frio aumentava com a jornada, e que chegou uma ocasi�o em que me pareceu entrar na regi�o dos gelos eternos. Com efeito, abri os olhos e vi que o meu animal galopava numa plan�cie branca de neve, com uma ou outra montanha de neve, vegeta��o de neve, e v�rios animais grandes e de neve. Tudo neve; chegava a gelar-nos um sol de neve. Tentei falar, mas apenas pude grunhir esta pergunta ansiosa:
- Onde estamos?
- J� passamos o �den.
- Bem; paremos na tenda de Abra�o.
- Mas se n�s caminhamos para tr�s! redarg�iu motejando a minha cavalgadura.
Fiquei vexado e aturdido. A jornada entrou a parecer-me enfadonha e extravagante, o frio inc�modo, a condu��o violenta, e o resultado impalp�vel. E depois - cogita��es de enfermo - dado que cheg�ssemos ao fim indicado, n�o era imposs�vel que os s�culos, irritados com lhes devassarem a origem, me esmagassem entre as unhas que deviam ser t�o seculares como eles. Enquanto assim pensava, �amos devorando caminho, e a plan�cie voava debaixo dos nossos p�s, at� que o animal estacou, e pude olhar mais tranq�ilamente em torno de mim. Olhar somente; nada vi, al�m da imensa brancura da neve, que desta vez invadira o pr�prio c�u, at� ali azul. Talvez, a espa�os, me aparecia uma ou outra planta, enorme, brutesca, meneando ao vento as suas largas folhas. O sil�ncio daquela regi�o era igual ao do sepulcro: dissera-se que a vida das coisas ficara est�pida diante do homem.
Caiu do ar? destacou-se da terra? n�o sei; sei que um vulto imenso, uma figura de mulher me apareceu ent�o, fitando-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastid�o das formas selv�ticas, e tudo escapava � compreens�o do olhar humano, porque os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita vez di�fano. Estupefato, n�o disse nada, n�o cheguei sequer a soltar um grito; mas, ao cabo de algum tempo, que foi breve, perguntei quem era e como se chamava: curiosidade de del�rio.
-Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua m�e e tua inimiga.
Ao ouvir esta �ltima palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura soltou uma gargalhada, que produziu em torno de n�s o efeito de um tuf�o; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das coisas externas.
N�o te assustes, disse ela, minha inimizade n�o mata; � sobretudo pela vida que se afirma. Vives: n�o quero outro flagelo.
- Vivo? perguntei eu, enterrando as unhas nas m�os, como para certificar
me da exist�ncia.
- Sim, verme, tu vives. N�o receies perder esse andrajo que � teu orgulho; provar�s ainda, por algumas horas, o p�o da dor e o vinho da mis�ria. Vives: agora mesmo que ensandeceste, vives; e se a tua consci�ncia reouver um instante de sagacidade, tu dir�s que queres viver.
Dizendo isto, a vis�o estendeu o bra�o, segurou-me pelos cabelos e levantou-me ao ar, como se fora uma pluma. S� ent�o, pude ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma contor��o violenta, nenhuma express�o de �dio ou ferocidade; a fei��o �nica, geral, completa, era a da impassibilidade ego�sta, a da eterna surdez, a da vontade im�vel. Raivas, se as tinha, ficavam encerradas no cora��o. Ao mesmo tempo, nesse rosto de express�o glacial, havia um ar de juventude, mescla de for�a e vi�o, diante do qual me sentia eu o mais d�bil e decr�pito dos seres.
- Entendeste-me? disse ela, no fim de algum tempo de m�tua contempla��o.
- N�o, respondi; nem quero entender-te; tu �s absurda, tu �s uma f�bula. Estou sonhando, decerto, ou, se � verdade que enlouqueci, tu n�o passas de uma concep��o de alienado, isto �, uma coisa v�, que a raz�o ausente n�o pode reger nem palpar. Natureza, tu? a Natureza que eu conhe�o � s� m�e e n�o inimiga; n�o faz da vida um flagelo, nem, como tu, traz esse rosto indiferente, como o sepulcro E por que Pandora?
- Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a esperan�a, consola��o dos homens. Tremes?
- Sim; o teu olhar fascina-me.
- Creio; eu n�o sou somente a vida; sou tamb�m a morte, e tu est�s prestes a devolver
me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada.
Quando esta palavra ecoou, como um trov�o, naquele imenso vale, afigurou-me que era o �ltimo som que chegava a meus ouvidos; pareceu-me sentir a decomposi��o s�bita do mim mesmo. Ent�o, encarei-a com olhos s�plices, e pedi mais alguns anos.
- Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes de vida? Para devorar e seres devorado depois? N�o est�s farto do espet�culo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia, a melancolia da tarde, a quieta��o da noite, os aspectos da terra, o sono, enfim, o maior benef�cio das minhas m�os. Que mais queres tu, sublime idiota?
- Viver somente, n�o te pe�o mais nada. Quem me p�s no cora��o este amor da vida, se n�o tu? e, se eu amo a vida, por que te h�s de golpear a ti mesma, matando-me?
- Porque j� n�o preciso de ti. N�o importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem � forte, jocundo, sup�e trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste. Ego�smo, dizes tu? Sim, ego�smo, n�o tenho outra lei. Ego�smo, conserva��o. A on�a mata o novilho porque o racioc�nio da on�a � que ela deve viver, e se o novilho � tenro tanto melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha.
Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, atrav�s de um nevoeiro, uma coisa �nica. Imagina tu, leitor, uma redu��o dos s�culos, e um desfilar de todos eles, as ra�as todas, todas as paix�es, o tumulto dos imp�rios, a guerra dos apetites e dos �dios, a destrui��o rec�proca dos seres e das coisas. Tal era o espet�culo, acerbo e curioso espet�culo. A hist�ria do homem e da terra tinha assim uma intensidade que lhe n�o podiam dar nem a imagina��o nem a ci�ncia, porque a ci�ncia � mais lenta e a imagina��o mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensa��o viva de todos os tempos. Para descrev�-la seria preciso fixar o rel�mpago. Os s�culos desfilavam num turbilh�o, e, n�o obstante, porque os olhos do del�rio s�o outros, eu via tudo o que passava diante de mim, - flagelos e del�cias, - desde essa coisa que se chama gl�ria at� essa outra que se chama mis�ria, e via o amor multiplicando a mis�ria, e via a mis�ria agravando a debilidade. A� vinham a cobi�a que devora, a c�lera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, �midas de suor, e a ambi��o, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, at� destru�-lo, como um farrapo. Eram as formas v�rias de um mal, que ora mordia a v�scera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da esp�cie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia � indiferen�a, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Ent�o o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atr�s de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalp�vel, outro de improv�vel, outro de invis�vel, cosidos todos a ponto prec�rio, com a agulha da imagina��o; e essa figura, - nada menos que a quimera da felicidade, - ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e ent�o ela ria, como um esc�rnio, e sumia-se, como uma ilus�o.
Ao contemplar tanta calamidade, n�o pude reter um grito de ang�stia, que Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e n�o sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu que me pus a rir, - de um riso descompassado e idiota.
- Tens raz�o, disse eu, a coisa � divertida e vale a pena, - talvez mon�tona - mas vale a pena. Quando Job amaldi�oava o dia em que fora concebido, � porque lhe davam ganas de ver c� de cima o espet�culo. Vamos l�, Pandora, abre o ventre, e digere
me; a coisa � divertida, mas digere-me.
A resposta foi compelir-me fortemente a olhar para baixo, e a ver os s�culos que continuavam a passar, velozes e turbulentos, as gera��es que se superpunham �s gera��es, umas tristes, como os Hebreus do cativeiro, outras alegres, como os devassos de C�modo, e todas elas pontuais na sepultura. Quis fugir, mas uma for�a misteriosa me retinha os p�s; ent�o disse comigo: - "Bem, os s�culos v�o passando, chegar� o meu, e passar� tamb�m, at� o �ltimo, que me dar� a decifra��o da eternidade." E fixei os olhos, e continuei a ver as idades, que vinham chegando e passando, j� ent�o tranq�ilo e resoluto, n�o sei at� se alegre. Talvez alegre. Cada s�culo trazia a sua por��o de sombra e de luz, de apatia e de combate, de verdade e de erro, e o seu cortejo de sistemas, de id�ias novas, de novas ilus�es; em cada um deles rebentavam as verduras de uma primavera, e amareleciam depois, para remo�ar mais tarde. Ao passo que a vida tinha assim uma regularidade de calend�rio, fazia-se a hist�ria e a civiliza��o, e o homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, constru�a o tug�rio e o pal�cio, a rude aldeia e Tebas de cem portas, criava a ci�ncia, que perscruta, e a arte que enleva, fazia-se orador, mec�nico, fil�sofo, corria a face do globo, descia ao ventre da terra, subia � esfera das nuvens, colaborando assim na obra misteriosa, com que entretinha a necessidade da vida e a melancolia do desamparo. Meu olhar, enfarado e distra�do, viu enfim chegar o s�culo presente, e atr�s dele os futuros. Aquele vinha �gil, destro, vibrante, cheio de si, um pouco difuso, audaz, sabedor, mas ao cabo t�o miser�vel como os primeiros, e assim passou e assim passaram os outros, com a mesma rapidez e igual monotonia. Redobrei de aten��o; fitei a vista; ia enfim ver o �ltimo, - o �ltimo!; mas ent�o j� a rapidez da marcha era tal, que escapava a toda a compreens�o; ao p� dela o rel�mpago seria um s�culo. Talvez por isso entraram os objetos a trocarem-se; uns cresceram, outros minguaram, outros perderam-se no ambiente; um nevoeiro cobriu tudo, - menos o hipop�tamo que ali me trouxera, e que ali�s come�ou a diminuir, a diminuir, a diminuir, at� ficar do tamanho de um gato. Era efetivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato Sult�o, que brincava � porta da alcova, com uma bola de papel..."
Que me conste, ainda ningu�m relatou o seu pr�prio del�rio; fa�o-o eu, e a ci�ncia mo agradecer�. Se o leitor n�o � dado � contempla��o destes fen�menos mentais, pode saltar o cap�tulo; v� direito � narra��o. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que � interessante saber o que se passou na minha cabe�a durante uns vinte a trinta minutos.
Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chin�s, bojudo, destro, escanhoando um mandarim, que me pagava o trabalho com belisc�es e confeitos: caprichos de mandarim.
Logo depois, senti-me transformado na Suma Teologica de S�o Tom�s, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; id�ia esta que me deu ao corpo a mais completa imobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as minhas m�os os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre, algu�m as descruzava (Virg�lia decerto), porque a atitude lhe dava a imagem de um defunto.
Ultimamente, restitu�do � forma humana, vi chegar um hipop�tamo, que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, n�o sei se por medo ou confian�a; mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrog�-lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino.
- Engana-se, replicou o animal, n�s vamos � origem dos s�culos.
Insinuei que deveria ser muit�ssimo longe; mas o hipop�tamo n�o me entendeu ou n�o me ouviu, se � que n�o fingiu uma dessas coisas; e, perguntando-lhe, visto que ele falava, se era descendente do cavalo de Aquiles ou da asna de Bala�o, retorquiu-me com um gesto peculiar a estes dois quadr�pedes: abanou as orelhas. Pela minha parte fechei os olhos e deixei-me ir � ventura. J� agora n�o se me d� de confessar que sentia umas tais ou quais c�cegas de curiosidade, por saber onde ficava a origem dos s�culos, se era t�o misteriosa como a origem do Nilo, e sobretudo se valia alguma coisa mais ou menos do que a consuma��o dos mesmos s�culos: reflex�es de c�rebro enfermo. Como ia de olhos fechados, n�o via o caminho; lembra-me s� que a sensa��o de frio aumentava com a jornada, e que chegou uma ocasi�o em que me pareceu entrar na regi�o dos gelos eternos. Com efeito, abri os olhos e vi que o meu animal galopava numa plan�cie branca de neve, com uma ou outra montanha de neve, vegeta��o de neve, e v�rios animais grandes e de neve. Tudo neve; chegava a gelar-nos um sol de neve. Tentei falar, mas apenas pude grunhir esta pergunta ansiosa:
- Onde estamos?
- J� passamos o �den.
- Bem; paremos na tenda de Abra�o.
- Mas se n�s caminhamos para tr�s! redarg�iu motejando a minha cavalgadura.
Fiquei vexado e aturdido. A jornada entrou a parecer-me enfadonha e extravagante, o frio inc�modo, a condu��o violenta, e o resultado impalp�vel. E depois - cogita��es de enfermo - dado que cheg�ssemos ao fim indicado, n�o era imposs�vel que os s�culos, irritados com lhes devassarem a origem, me esmagassem entre as unhas que deviam ser t�o seculares como eles. Enquanto assim pensava, �amos devorando caminho, e a plan�cie voava debaixo dos nossos p�s, at� que o animal estacou, e pude olhar mais tranq�ilamente em torno de mim. Olhar somente; nada vi, al�m da imensa brancura da neve, que desta vez invadira o pr�prio c�u, at� ali azul. Talvez, a espa�os, me aparecia uma ou outra planta, enorme, brutesca, meneando ao vento as suas largas folhas. O sil�ncio daquela regi�o era igual ao do sepulcro: dissera-se que a vida das coisas ficara est�pida diante do homem.
Caiu do ar? destacou-se da terra? n�o sei; sei que um vulto imenso, uma figura de mulher me apareceu ent�o, fitando-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastid�o das formas selv�ticas, e tudo escapava � compreens�o do olhar humano, porque os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita vez di�fano. Estupefato, n�o disse nada, n�o cheguei sequer a soltar um grito; mas, ao cabo de algum tempo, que foi breve, perguntei quem era e como se chamava: curiosidade de del�rio.
-Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua m�e e tua inimiga.
Ao ouvir esta �ltima palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura soltou uma gargalhada, que produziu em torno de n�s o efeito de um tuf�o; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das coisas externas.
N�o te assustes, disse ela, minha inimizade n�o mata; � sobretudo pela vida que se afirma. Vives: n�o quero outro flagelo.
- Vivo? perguntei eu, enterrando as unhas nas m�os, como para certificar
me da exist�ncia.
- Sim, verme, tu vives. N�o receies perder esse andrajo que � teu orgulho; provar�s ainda, por algumas horas, o p�o da dor e o vinho da mis�ria. Vives: agora mesmo que ensandeceste, vives; e se a tua consci�ncia reouver um instante de sagacidade, tu dir�s que queres viver.
Dizendo isto, a vis�o estendeu o bra�o, segurou-me pelos cabelos e levantou-me ao ar, como se fora uma pluma. S� ent�o, pude ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma contor��o violenta, nenhuma express�o de �dio ou ferocidade; a fei��o �nica, geral, completa, era a da impassibilidade ego�sta, a da eterna surdez, a da vontade im�vel. Raivas, se as tinha, ficavam encerradas no cora��o. Ao mesmo tempo, nesse rosto de express�o glacial, havia um ar de juventude, mescla de for�a e vi�o, diante do qual me sentia eu o mais d�bil e decr�pito dos seres.
- Entendeste-me? disse ela, no fim de algum tempo de m�tua contempla��o.
- N�o, respondi; nem quero entender-te; tu �s absurda, tu �s uma f�bula. Estou sonhando, decerto, ou, se � verdade que enlouqueci, tu n�o passas de uma concep��o de alienado, isto �, uma coisa v�, que a raz�o ausente n�o pode reger nem palpar. Natureza, tu? a Natureza que eu conhe�o � s� m�e e n�o inimiga; n�o faz da vida um flagelo, nem, como tu, traz esse rosto indiferente, como o sepulcro E por que Pandora?
- Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a esperan�a, consola��o dos homens. Tremes?
- Sim; o teu olhar fascina-me.
- Creio; eu n�o sou somente a vida; sou tamb�m a morte, e tu est�s prestes a devolver
me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada.
Quando esta palavra ecoou, como um trov�o, naquele imenso vale, afigurou-me que era o �ltimo som que chegava a meus ouvidos; pareceu-me sentir a decomposi��o s�bita do mim mesmo. Ent�o, encarei-a com olhos s�plices, e pedi mais alguns anos.
- Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes de vida? Para devorar e seres devorado depois? N�o est�s farto do espet�culo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia, a melancolia da tarde, a quieta��o da noite, os aspectos da terra, o sono, enfim, o maior benef�cio das minhas m�os. Que mais queres tu, sublime idiota?
- Viver somente, n�o te pe�o mais nada. Quem me p�s no cora��o este amor da vida, se n�o tu? e, se eu amo a vida, por que te h�s de golpear a ti mesma, matando-me?
- Porque j� n�o preciso de ti. N�o importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem � forte, jocundo, sup�e trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste. Ego�smo, dizes tu? Sim, ego�smo, n�o tenho outra lei. Ego�smo, conserva��o. A on�a mata o novilho porque o racioc�nio da on�a � que ela deve viver, e se o novilho � tenro tanto melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha.
Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, atrav�s de um nevoeiro, uma coisa �nica. Imagina tu, leitor, uma redu��o dos s�culos, e um desfilar de todos eles, as ra�as todas, todas as paix�es, o tumulto dos imp�rios, a guerra dos apetites e dos �dios, a destrui��o rec�proca dos seres e das coisas. Tal era o espet�culo, acerbo e curioso espet�culo. A hist�ria do homem e da terra tinha assim uma intensidade que lhe n�o podiam dar nem a imagina��o nem a ci�ncia, porque a ci�ncia � mais lenta e a imagina��o mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensa��o viva de todos os tempos. Para descrev�-la seria preciso fixar o rel�mpago. Os s�culos desfilavam num turbilh�o, e, n�o obstante, porque os olhos do del�rio s�o outros, eu via tudo o que passava diante de mim, - flagelos e del�cias, - desde essa coisa que se chama gl�ria at� essa outra que se chama mis�ria, e via o amor multiplicando a mis�ria, e via a mis�ria agravando a debilidade. A� vinham a cobi�a que devora, a c�lera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, �midas de suor, e a ambi��o, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, at� destru�-lo, como um farrapo. Eram as formas v�rias de um mal, que ora mordia a v�scera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da esp�cie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia � indiferen�a, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Ent�o o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atr�s de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalp�vel, outro de improv�vel, outro de invis�vel, cosidos todos a ponto prec�rio, com a agulha da imagina��o; e essa figura, - nada menos que a quimera da felicidade, - ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e ent�o ela ria, como um esc�rnio, e sumia-se, como uma ilus�o.
Ao contemplar tanta calamidade, n�o pude reter um grito de ang�stia, que Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e n�o sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu que me pus a rir, - de um riso descompassado e idiota.
- Tens raz�o, disse eu, a coisa � divertida e vale a pena, - talvez mon�tona - mas vale a pena. Quando Job amaldi�oava o dia em que fora concebido, � porque lhe davam ganas de ver c� de cima o espet�culo. Vamos l�, Pandora, abre o ventre, e digere
me; a coisa � divertida, mas digere-me.
A resposta foi compelir-me fortemente a olhar para baixo, e a ver os s�culos que continuavam a passar, velozes e turbulentos, as gera��es que se superpunham �s gera��es, umas tristes, como os Hebreus do cativeiro, outras alegres, como os devassos de C�modo, e todas elas pontuais na sepultura. Quis fugir, mas uma for�a misteriosa me retinha os p�s; ent�o disse comigo: - "Bem, os s�culos v�o passando, chegar� o meu, e passar� tamb�m, at� o �ltimo, que me dar� a decifra��o da eternidade." E fixei os olhos, e continuei a ver as idades, que vinham chegando e passando, j� ent�o tranq�ilo e resoluto, n�o sei at� se alegre. Talvez alegre. Cada s�culo trazia a sua por��o de sombra e de luz, de apatia e de combate, de verdade e de erro, e o seu cortejo de sistemas, de id�ias novas, de novas ilus�es; em cada um deles rebentavam as verduras de uma primavera, e amareleciam depois, para remo�ar mais tarde. Ao passo que a vida tinha assim uma regularidade de calend�rio, fazia-se a hist�ria e a civiliza��o, e o homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, constru�a o tug�rio e o pal�cio, a rude aldeia e Tebas de cem portas, criava a ci�ncia, que perscruta, e a arte que enleva, fazia-se orador, mec�nico, fil�sofo, corria a face do globo, descia ao ventre da terra, subia � esfera das nuvens, colaborando assim na obra misteriosa, com que entretinha a necessidade da vida e a melancolia do desamparo. Meu olhar, enfarado e distra�do, viu enfim chegar o s�culo presente, e atr�s dele os futuros. Aquele vinha �gil, destro, vibrante, cheio de si, um pouco difuso, audaz, sabedor, mas ao cabo t�o miser�vel como os primeiros, e assim passou e assim passaram os outros, com a mesma rapidez e igual monotonia. Redobrei de aten��o; fitei a vista; ia enfim ver o �ltimo, - o �ltimo!; mas ent�o j� a rapidez da marcha era tal, que escapava a toda a compreens�o; ao p� dela o rel�mpago seria um s�culo. Talvez por isso entraram os objetos a trocarem-se; uns cresceram, outros minguaram, outros perderam-se no ambiente; um nevoeiro cobriu tudo, - menos o hipop�tamo que ali me trouxera, e que ali�s come�ou a diminuir, a diminuir, a diminuir, at� ficar do tamanho de um gato. Era efetivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato Sult�o, que brincava � porta da alcova, com uma bola de papel..."