Um dia desses fui ao serviço de orientação jurídica pra estrangeiros. Cheguei por indicação de um funcionário do consulado brasileiro de Barcelona, que me disse que eu deveria ter pedido um visto espanhol ainda na Alemanha. Não me esforcei pra chegar cedo (não é um dom que eu tenha), então peguei minha senha pelas dez e pouco, quase onze horas. A menina na recepção disse que tinha bastante gente, demoraria pelo menos um par de horas. A multidão de estrangeiros era tão grande que não dava pra sentar nem nas escadas. Saí pela direita, caí na Plaça de Espanya, saí andando pelo bairro.
Dei um rolê pelo Raval, entrei em umas livrarias, passei no CCCB pra ver a programação do BAC, entrei em umas lojas de instrumentos musicais por ali - me apaixonei por umas miniguitarras, provavelmente pra crianças, uma delas réplica da Gibson SG. Voltei, e ainda faltava muito. Sentei no café ao lado do prédio, saquei o Ficções do Borges em Castellano que peguei da Biblioteca, reli alguns daqueles contos clássicos - as ruínas circulares, a loteria da babilônia, tlôn, uqbar e orbis tertius, funes... em algum momento fiquei devaneando sobre o artigo de Pedro Correa do Lago na Piauí. Lembrei do comentário dele sobre o Borges ter chegado bem vestido, me liguei que aqui em Barcelona os homens mais velhos são bastante vaidosos, sempre alinhados e bem-vestidos. Comparei isso com a Alemanha, onde tive a impressão que os velhinhos estavam sempre testando as últimas novidades em roupas de jogging e esporte.
Fui conferir a fila, ainda faltavam mais de trinta pra me atenderem. Já passava das 14hs, cada atendimento durava mais ou menos dois minutos. Saí pra ver como ficava o bairro na hora da siesta - tudo fica com cara de sonho na hora da siesta, não sei se só por ter menos gente na rua ou por algum tipo de influência que os dormidores exercem sobre o mundo desperto. Caminhava processando a releitura de Borges na cabeça, e antes de virar a esquina um senhor de seus oitenta, bem arrumado, óculos de sol, gel nos cabelos, tateava com sua bengala de cego o chão. Era acompanhado por uma senhora de sorriso amável. Fiquei pensando em como era curioso eu ler Borges e encontrar um cego na rua.
Quando virei a esquina, fiquei um pouco confuso. Pelo menos mais meia dúzia de cegos andavam pela rua, tateando. Um deles, instado pela esposa, molhava as mãos em uma espécie de fonte no prédio ao lado (que pra mim parecia mais um daqueles mictórios criativos da Bica do Curió, na estrada pra Taubaté-Ubatuba). Me perguntei se algum deles poderia ser Borges. Entendi que o prédio era algum centro de atividades para os senhores cegos, e percebi que ele nunca se envolveria com esse tipo de coisa.
Consegui ser atendido às quatro da tarde. Durou um minuto, marquei hora com um advogado pra semana que vem.