Estive semana passada em Londres, a convite de Bronac Ferran, do RCA/Imperial College, para uma apresentação sobre "Brasilian Media Ecologies", dentro da programação do Systems of Learning. Junto comigo, estavam Ricardo Ruiz e Carlos Villela. Na verdade eu experimentei uma longa conversa que começou tarde de segunda-feira no escritorio do CV com Ruiz e a presença de Tori Holmes, se estendeu para um pub à noite com a Bronac e continuou no dia seguinte caminhando com o Ruiz pela Portobello Road, depois através do Hyde Park e finalmente na sessão propriamente dita, no auditorio do RCA, além de continuar em outro pub e depois encerrar em um restaurante indiano. Durante boa parte das conversas o CV ficou desenhando mindmaps no meu caderno, e apareceram algumas boas idéias por ali. Impossível relatar tudo que a gente conversou, mas vão abaixo algumas impressões baseadas nos rabiscos do meu caderno.
Rapidinho sobre Londres: cidade doida, mas ao mesmo tempo muito atrativa, até aconchegante. Tive problemas na entrada, uma hora de alfândega e uma recomendação pra não voltar antes de seis meses. O hotel era estranho, apertado, e a internet deles oscilava tanto que cheguei a pensar que fosse problema do meu cartão wi-fi. Mais uma vez tive que recorrer ao chá de boldo, porque é muita fritura naquela terra. Boas cervejas.
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A nossa primeira grande questão foi tentar entender o interesse recorrente no Brasil. Uma das hipóteses mais prováveis é que no mundo "desenvolvido" está se começando a perceber que o "progresso" não é uma via de mão única, e que é bastante provável que o mundo inteiro não vá seguir o modelo de estado ocidental, democrático, previsível e estável. Uma das palavras-chave é justamente essa: estabilidade. Lembrei da conversa que tive com o James Wallbank em Manchester, e acho que dá pra tentar aplicar uma questão similar à que ele levanta (sobre as pessoas estarem perdendo habilidades essenciais para a vida em sociedade): se o mundo, do ponto de vista europeu, está se tornando cada vez mais instável (desemprego, "terrorismo", imigração, etc), como eles podem aprender a lidar com essa situação? Correndo o risco de parecer romântico, acredito que uma das características mais tipicamente brasileiras é exatamente essa habilidade, de não só se manter, mas chegar a evoluir na precariedade, driblando a eventual carestia de estrutura ou recursos com uma grande dose de improvisação e sempre recorrendo à onipresença das redes.
Também beirando o exagero, adotei uma perspectiva de que as redes estão em toda parte: para qualquer tipo de problema que eu possa ter no Brasil, é bastante provável que eu recorra em primeiro lugar à minha rede de contatos. Tem uma coisa que se vê nas ruas da Europa, de as pessoas baterem pé por seus direitos até em coisas simples como um ônibus atrasar por 10 minutos, porque na cabeça delas é assim que as coisas deveriam funcionar. E isso vai pra toda parte: em grande parte da Europa ainda se acredita na justiça, no estado, na democracia. Em um cenário de instabilidade, esse tipo de percepção é impraticável.
Minha opinião é que no Brasil a gente aprende a ignorar a maneira como as coisas deveriam funcionar, e ao mesmo tempo aprende que precisa conhecer as pessoas certas se quiser fazer qualquer coisa. Para o bem ou para o mal. De tudo isso decorre uma percepção, principalmente na burguesia com referências externas, de que a improvisação e a adaptabilidade ao cotidiano instável são errados, e que as pessoas deveriam "estudar" para "melhorar de vida". Engraçado é ver que na Alemanha está se começando a considerar um problema o fato de o pessoal estudar demais, e o país precisar de cada vez mais mão de obra imigrante para tarefas menos qualificadas. Ouvi mais de uma vez pessoas na Alemanha se referindo ironicamente a si mesmos como um "país de doutores". Outra coisa que consegui captar na Europa é essa sensação do pessoal da minha idade, de terem seguido à risca o script traçado pela sociedade: "terminar o colégio, viajar por um ano, fazer faculdade, viajar por um ano, mestrado, e agora?" Aqui na Espanha se fala nos "mileuristas", o pessoal que estudou bastante e continua ganhando a mesma coisa. Não que esse tipo de coisa não passe também no Brasil - a sociedade-lemingue parece levar todo mundo ao precipício, principalmente a auto-proclamada "classe média". Mas no Brasil lá fora, a verdadeira classe média - em termos estatísticos - tem que improvisar bastante no dia a dia, e isso pode ser um caminho interessante.
Resumindo até agora, uma característica essencial do ser brasileiro que tem atraído interesse na Europa é a naturalidade com que a gente trata as redes, a colaboração e a instabilidade. Encontrei agora uns textos que têm a ver com essa onda:
Na sessão no RCA, eu comecei falando que não sabia muito bem por onde começar, porque existem similaridades e diferenças entre o que a gente faz no Brasil e o que se faz pela Europa. Falei do MetaReciclagem, mostrei fotinhos e falei do momento que acho fundamental na transformação de "coletivo" em "meta-jogo": quando decidimos não propor um centro de mídia como resposta à chamada da plataforma Waag-Sarai, evitando a polarização entre institucionalizar e se manter só como uma rede informal. Falei um pouco da experiência de mega-escala repentina com os Pontos de Cultura, falei da antropofagia, do tropicalismo, da festa como linguagem, e de algumas descobertas no caminho. Falei de gambiarra, de MetaReciclagem como invasão pirata, e por aí foi. Falei até do Ian e do Regis.
O Ruiz levantou um ponto interessante: em contraste com o multiculturalismo das políticas públicas corretas européias, o Brasil opta pelo panculturalismo, hibridizado, e com muitos elementos de cultura oral. Falou sobre os encontros, em especial o Sub#3. O texto que ele e Balbino prepararam está publicado no pub//descentro.
Alguns comentários dxs presentes (como falou a Bronac, poucxs pessoas mas de qualidade) foram bem interessantes. Um deles comentou sobre como na real a MetaReciclagem tem uma postura de alimentar-se de problemas, o que faz algum sentido. Graham Harwood, envolvido com o Mongrel e o Mediashed, nos perguntou até que ponto não estávamos, principalmente com os Pontos de Cultura, facilitando o controle, ao digitalizar e explicitar culturas que até então estavam fora de alcance. A questão é legítima e me incomodou por alguns minutos, mas quero crer que privacidade absoluta é outro mito moderno que a gente aprende desde cedo a ignorar. Em se tratando de privacidade doméstica, morar com um bando de gente, ou em uma casa com população variável, facilita o desenvolvimento de diversos códigos negociados para conseguir privacidade temporária ou contextual. Quanto à privacidade no espaço público, é mais complicado. Dá pra argumentar que nas grandes cidades brasileiras existe o espaço privado, que muitas vezes é coletivizado, e o espaço de ninguém - espaço realmente público, do qual a sociedade se apropria, é uma coisa rara. No espaço de ninguém, a privacidade depende bastante da capacidade de cada 1 tem de se fazer invisível ou mescladx. Não é uma resposta boa, mas me parece adequada.