Respondendo

Sergio Rosa me mandou algumas perguntas pra um artigo que está escrevendo pro Overmundo. Publico abaixo minhas respostas porque tem algumas coisas que só entendi quando respondia pra ele.

 

 On 12/14/07, Sergio Rosa wrote:
> - tivemos em BH o encontro dos pontos de cultura brasileiros: Teia 2007. Foi
> um evento enorme e que mobilizou parte da cidade. como você analisa a
> política dos pontos de cultura do gov. federal e a atuação do ministro da
> cultura (por estar ligado ao Creative Commons, incentivar politicamente o
> software livre...)? O que há acontecendo de verdadeiro e o que é propaganda
> demais? Como você analisa de uma maneira geral a politica federal
> relacionada ao software livre e a uma informática mais "aberta"?

Eu participei de toda a primeira fase da ação de cultura digital no projeto
dos Pontos de Cultura, das conversas na casa do Claudio Prado antes de
existir qualquer espaço para esse tipo de ação no MinC até junho de 2007.
Vi todo o processo, de uma metodologia nascer em paralelo ao ritmo do
ministério, criada colaborativamente por pessoas que vinham de diversos
grupos independentes de todo o Brasil e tiveram a coragem e a imprudência
de tentar influenciar a maneira como a política pública no cruzamento entre
cultura e tecnologia era feita no Brasil. No meio desse processo, como tantas
outras pessoas, eu fiquei decepcionado reiteradas vezes porque, dado o
contexto, a gente usava um megafone para que se ouvisse um sussurro
do que queríamos dizer. O que chamas de propaganda pode sim ser
entendido como hipérbole, e muito do que se fala sobre software livre e
cultura livre no Brasil é vento... o investimento efetivo em desenvolvimento
de software, a quantidade de pessoas trabalhando na implementação de
ações de cultura livre é muito aquém do necessário. Mesmo durante esses
dois anos e meio em que se conseguiu contratar uma equipe de poucas
dezenas de pessoas para implementar a cultura digital nas muitas centenas
de pontos de cultura, a precariedade foi freqüente: salários atrasados, falta
de estrutura de comunicação, passagens não emitidas, equipamentos
pessoais utilizados em oficina. Mas faz parte do jogo. Tentar transformar
a máquina pública desde dentro é sujeitar-se à instabilidade. Não acredito
que poderia ter acontecido de outra forma. Mas o tempo também fez muitos
de nós entendermos que o governo não é o único caminho, e agora é
hora de os movimentos autônomos se questionarem: se algumas de suas
bandeiras clássicas (diversidade, auto-organização, auto-determinação
religiosa e sexual, valorização das culturas populares) são apropriadas
pelo governo, nos sentidos positivos e negativos, como é que a gente
se define agora? Quando a pura negação não é mais viável, o que é
que a gente propõe? Eu acredito - ou quero acreditar - que o Brasil deu
espaço para a cultura livre nesses últimos anos. E isso aconteceu por
uma série de fatores. O governo abriu espaço, as comunidades de
desenvolvimento de software livre saíram do nicho puramente tecnológico,
as universidades ofereceram infra-estrutura, grupos de produtores
multimídia como o estudiolivre.org se organizaram. O trabalho da CTS
na FGV com as licenças Creative Commons, a imprensa de informática,
a wikipedia, os blogs. Isso não quer dizer que eu concorde com todas
essas iniciativas. É necessário criticar todas elas, e que exista espaço
para essa crítica. Mas é inegável que alguma coisa mudou, que o Brasil
atraiu uma atenção em todo o mundo que possibilitou que mais coisas
fossem realizadas. E muito dessa atenção foi devido a ações hiperbólicas
e midiáticas. Não acho que seria diferente. O que também não quer dizer
que eu tenha só elogios.

> - BH é uma das primeiras cidades a utilizar uma versão on-line do orçamento
> participativo. para o próximo ano, a PBH pretende ampliar o sistema e criar
> ferramentas para a simulação de debates públicos acerca dos projetos que
> poderão ser aprovados. você acha que a internet (ok, falando aqui de uma
> maneira bem ampla, mas quero dizer sobre projetos que solicitem ou permitam
> algum tipo de participação dos indivíduos no processo democrático) consegue
> incentivar uma maior participação política na sociedade (ou na parte da
> sociedade que tem acesso) ou o que temos é: quem participa offline é quem
> participa on-line e, portanto, nao temos um "novo"publico participando por
> causa da rede?

Não tenho dados pra comentar, mas acho possível que aconteça justamente
o contrário: a idéia de orçamento participativo é fantástica, mas exige das
pessoas comuns um tempo a dedicar à política (aqui no bom e velho sentido
grego, da politéia, viver em grupo) que não me parece viável. Utilizar
a internet
para ampliar o debate, comprimir tempo e espaço, virtualizar a política, me
parece promissor, desde que não venha embalado como solução milagrosa
ou que se reduza a participação à mera votação. Uma das coisas mais
características dos usos colaborativos das novas tecnologias é justamente
a retomada do social, do convívio, do hábito de debater, trocar informações,
conhecer-se pelo reflexo no outro, no grupo. Já sabemos desde o fim
do milênio que a internet não é só um novo mercado ou uma nova maneira
de acessar a informação: é um ambiente construído socialmente. Que se
utilizem essas características para apoiar novas formas de decisão coletiva
democrática, acho totalmente positivo.

> - já passamos há muito tempo da era incipiente da internet. temos mais de
> uma década de popularização dos pcs e a banda larga se torna cada dia mais
> acessível (apesar de ambos continuarem bem restritos a uma certa parte da
> populacao, mas eh uma parcela crescente). voce provavelmente já acompanha
> isso tudo há muito mais tempo. a minha pergunta é, com tudo o que você já
> viu e ainda vê, como é sua visão atual da rede como possível ferramentas de
> mudança social? você é otimista ou pessimista? sua visão tem mudado com o
> tempo?

MInha visão tem mudado, claro. Já vi casos de "mudança social"
potencializadas pela rede, mas no começo da MetaReciclagem
eu era bem mais messiânico. Também existe muita conformação
social ratificada pelas tecnologias, o uso sem reflexão ou aprofundamento,
o fetiche da tecnologia exacerbado pelo ritmo incessante das
novidades que as redes criam. Então, acho que mudança social
apoiada pelas novas tecnologias é totalmente possível, desde
que seja acompanhada de um processo de apropriação. O mero
uso de novas tecnologias não muda relações de poder, e não
leva necessariamente a aprendizado e conscientização. E além
da apropriação, existe um outro passo, que é a colaboração ativa,
que só se concretiza a partir da vontade de colaborar. Acho que
os casos em que a colaboração involuntária acontece são poucos,
e quase aleatórios. Aquela conversa de inteligência de enxame
é simplista, na medida que reduz o papel do indivíduo em querer
tomar parte na colaboração, e não leva em conta que ações
transformadoras são muitas vezes o resultado de uma disposição
coletiva que se deve em grande parte a um esforço exemplar de
algumas pessoas. Igualmente prejudicial é a colaboração
compulsória, que não leva à problematização ou conscientização.