O segundo dia do ano amanheceu aos poucos. Vi duas ou três vezes a luz do sol pela janela, mas não dei atenção. Contabilizava as sequelas - as pernas puxavam um pouco, nada de grave. A garganta estava pior - a curta noite anterior e a quantidade de chuva que eu tinha tomado tinham deixado sinais. Doía do fundo da boca até o ouvido esquerdo. Levantei, tomei uma colher de mel e voltei para a cama. Helicópteros passaram algumas vezes pelo céu.
Acordei de verdade com a Thalita me pedindo o telefone da pousada. Foi ao telefone público na vila para falar com o pessoal que estava lá. Também não conseguiu com o número que tínhamos, mas ligou pra Ubatuba, pediu pro pessoal entrar em contato com a galera na pousada para que ligassem de volta (o telefone público da Barra, felizmente, recebe ligações). Voltou um pouco tensa. O pessoal não gostou de ouvir que a estrada estava ruim. Ansiavam por roupas secas, sapatos, remédios, etc. Ainda estavam usando a roupa de festa de duas noites antes. Pediam ajuda.
Decidimos que uma parte da galera caminharia até a pousada levando os pertences básicos pra galera. Eu quis ficar por causa da garganta, me resguardando para os dias seguintes. Subiriam Thalita, Thyago e Daisy. Ainda acordando, aprontamos três mochilas o mais rápido que conseguimos, com as coisas do pessoal, água e o último pacote de biscoito de polvilho. Os três saíram. Fui lá atrás - no "queijo" - acenar para eles.
Subi até o quiosque para ver o estrago - de lá de cima até lá embaixo no rio, parecia estar no meio de um cânion. Uma camada de até um palmo de areia cobria boa parte do gramado, além de toda a horta. Zé Russo e Jamil trabalhavam para limpar o córrego até o rio. Depois saí para buscar limões. Não consegui encontrar nada perto da casa, então segui um pedacinho da trilha que vai até a nascente. Percebi a natureza ativa - plantas brilhando, borboletas e pássaros dando a impressão de trabalhar bastante. Ou talvez somente felizes com a luz e calor depois de tanta chuva. Agradeci a Oxalá pelo sol, secando tudo e a Ossanha pelos limões que acabei encontrando. Saudei Oxóssi e conversei com Oxum.
Dita me contou que haviam agora uma pinguela para atravessar o rio onde a ponte tinha rodado. Em casa, Cacilda contou com lágrimas nos olhos que a casa dela, apesar de ilesa até então, corria risco - o quarto fica a menos de dois metros de um barranco que ainda vai cair.
Fiquei feliz que a casa estava a salvo, razoavelmente acima do nível do rio. Tínhamos energia, comida para alguns dias, medicamentos e roupas limpas. Alguns diziam que passaríamos uma semana até poder ir embora.
Menos de duas horas depois da saída do pessoal, ouvi a voz do Michael na cozinha. Ele tinha saído da pousada, tomado uma carona para ver como estava a estrada, e descobriu que estava quase limpa até a primeira ponte quebrada, perto do dentista. De lá, tinha descido a pé. O pessoal na pousada não sabia que ele tinha ido tão longe. Depois de algum tempinho, fui telefonar para a pousada - ele tinha trazido o número certo. Falei com o Ricardo. O pessoal com as roupas e sapatos já tinha chegado lá - tomaram uma carona no fim do trajeto - e contou que a estrada estava muito melhor. Havia notícias de que existia um caminho possível para Guaratinguetá, e de lá para Sampa. Pediram que disséssemos ao Michael que não voltasse à pousada. O grupo que estava lá se dividiria mais uma vez - Jussara e Sandra voltariam para Sampa, o restante iria até onde fosse possível com um dos carros, e depois continuaria a pé até nos encontrar.
Fomos até a entrada do sítio para checar mais uma vez como estavam as condições. O rio continuava muito alto, e tivemos dúvidas se seria possível passar de carro por ali, tendo perdido quase um metro de largura do caminho. Mais tarde, o pessoal chegou. Todos felizes de estar de volta a casa.
No fim da tarde, quando pensávamos que não haveria mais surpresas, Renata chegou. Ela havia encontrado Sandra no centro de Cunha, deixado o carro no dentista e continuado a pé. Felizmente, conseguiu encontrar o sítio e chegou sem mais percalços. À noite, as meninas prepararam torta fria.
Na manhã do dia 03, mais uma missão. Thyago e Fernanda precisavam voltar a Sampa para trabalhar na segunda-feira. Eu, Carol e Daisy os acompanhamos, ajudando a levar as malas - Fernanda ainda tinha que levar o Cookie. Ricardo e Michael levariam os dois até o carro da Fê, que havia ficado na pousada dos Anjos, e continuariam até Cunha, para comprar mais alguns mantimentos - principalmente queijo - e quebrar o galho de trazer um pouco de gasolina pro Uno, que eu vacilei de não abastecer quando passei pela cidade. Jamil nos acompanhou, para ajudar a carregar as coisas. Renata também queria buscar alguns apetrechos que havia deixado no carro. A mala do Thyago estava pesada, e usamos um cajado para dividir o peso entre nós dois. Como a alça era muito grande, precisamos manter os braços dobrados de leve, ou a mala arrastaria no chão. Eu lembraria disso por dois dias.
O caminho estava muito melhor. A pinguela economizava a grande volta que a gente tinha precisado dar para evitar a ponte caída, dois dias antes. O barro também já estava bem mais seco. No caminho, mais uma vez contamos com o serviço expresso de notícias da roça: cada pessoa que passava contava mais um pouco sobre a situação em outros bairros, sobre a estrada para Guará ou sobre a família soterrada - somente a filha do Manolo sobrevivera, os outros corpos haviam sido encontrados. Alguém falou que ela mandou vender os animais e fechar o sítio, porque não quer voltar tão cedo para lá. Atravessamos a ponte quebrada - as duas cabeceiras ainda faltavam - e chegamos ao dentista. Uma égua e um potro novinho se escondiam atrás da casa. Nos despedimos de Thyago e Fê, e voltamos carregando coisas da Renata, pães e não lembro mais o quê.
À tarde, assistimos um filme na sala. Michael e Ricardo voltaram de Cunha com queijo e outras coisas. Ficamos sabendo que a filha do Manolo só sobreviveu porque tinha levantado para beber água, e na hora do soterramento a geladeira caiu em cima dela, com a porta aberta - o que lhe deu uma reserva de oxigênio para suportar algum tempo. À noite, mais um filme, e depois das onze saímos com o telescópio que a Su ganhou de natal para espiar a Lua cheia - delícia de visual, apesar da instabilidade do tripé. Mares & crateras ali, muito mais perto do que a gente costuma ver.
No dia 04 pela manhã, Michael e Ricardo saíram para ajudar nos mutirões que estavam reconstruindo as duas pontes estrada acima. Eu, Carol, Thalita, Aninha, Bila e Renata decidimos ir no sentido contrário, para verificar como estava a cachoeira. Havia algumas barreiras caídas no caminho, mas o mais impressionante foi ver o barranco que dá visão para a queda d'água. Um pedaço já tinha deslizado, e a estrada estava muito próxima da borda. Continuamos até lá embaixo, pedimos licença para entrar, e tivemos um certo alívio ao ver que, apesar do fluxo de água muito maior que o normal, a cachoeira ainda estava por lá, imponente e inteira.
Perto da hora do almoço, uma garoa leve sinalizou uma inversão em relação aos três dias de sol anteriores, mas logo parou. À tarde, alguns integrantes do mutirão chegaram na ponte logo depois da vila. Ricardo e Michael vieram junto. Eu e Mauro nos juntamos ao grupo. Eles traziam notícias - todos os pedaços da ponte que havia rodado foram encontrados no rio, rebocados por dentro d'água e recolocados no lugar. A primeira ponte também havia sido consertada. Para a ponte da vila, havia menos gente, mas ela estava quase intacta, apesar de deslocada cerca de dois metros para o lado. Carlinhos tinha uma catraca (eles usavam outro nome pra ela, mas esqueci - assim que alguém recordar eu publico abaixo). Quando vimos que não seria possível simplesmente arrastar a ponte inteira de volta para o lugar, começamos a desmontá-la. Eu, que não entendo nada de pontes, passei boa parte da tarde invertendo os pregos das travessas que o pessoal retirava - batendo com a marreta na ponta dos pregos de uns vinte centímetros para eles saírem do outro lado e adiantar a recolocação. Também ajudei a buscar uma pedra para escorar a ponte - e segui o conselho local de roubar um pêssego no caminho, que foi ainda mais saboroso quando lembrei do Chico Bento roubando goiabas do Nhô Lau. Saí do mutirão no fim da tarde porque precisava preparar branquinho e bicho-de-pé pra uma festa infantil.
Uma vez que a ponte tinha sido consertada, já tínhamos pelo menos como chegar com os carros na vila. Só restava a dúvida sobre o caminho de entrada do sítio. Colocamos duas tábuas compridas para marcar o canto onde não seria possível passar. O pessoal limpou um pouco do mato no outro lado, para deixar bem marcada a localização da grande pedra que havia no chão. Os três carros que restavam passaram rapidamente, e o caminho segurou bem a onda - sem mais quedas de barreira. Nenhum incidente. Alguém falou com o pessoal que mora na primeira casa depois da ponte para deixarmos os carros por lá até o dia seguinte (na verdade, não consigo ter certeza se isso aconteceu na tarde do dia 04 ou na manhã do dia 05, mas tenho quase certeza de que foi no dia 04 mesmo).
Depois da meia-noite, comemoramos o aniversário do Michael e soltamos os fogos que havíamos comprado para o reveillon. Fantásticos - pouco barulho, muita luz. Antes de dormir, alguém reafirmou a notícia que já havíamos tido na noite anterior: havia previsão de mais água para a região, com chances de cair uma chuva que podia durar mais de 12 horas. No dia seguinte, faríamos um churrasco para continuar a comemoração do aniversário. Decidimos que depois do churrasco iríamos todos embora.
O dia 05 já começou com pressa, todo mundo empacotando e encaixotando suas coisas. Fui correndo fazer o fogo para o churrasco, já achando que era complicado cair na estrada com a barriga cheia. Quando o fogo pegou e eu já ia temperar as carnes, veio a decisão. Não perderíamos mais tempo - o churrasco estava cancelado. A decisão era ir embora imediatamente. Levamos tudo para os carros que estavam no vizinho, enquanto Renata e Ricardo buscavam seus carros no dentista para ajudar na logística. Partimos em comboio. A estrada de terra estava castigada, mas sem os problemas graves de quatro dias antes. Paramos na pousada Sotaque Mineiro para pegar os carros que faltavam e redistribuir coisas e pessoas.
Seguimos até Cunha, paramos na Cidinha para comer alguma coisa e comprar água para a viagem. Um carro iria para Sampa, e os outros para Ubatuba. Não conseguimos informação sobre as condições da estrada Lagoinha - São Luís do Paraitinga. Eu e Carol ficamos para trás porque precisamos desentortar o protetor do carter e comprar parafusos para pôr de volta a placa do Uno que havia caído no dia primeiro. Já na estrada, vimos que os piores trechos - as pontes do Jacuí e Jacuizinho, entre outras - já haviam sido consertados, ou no mínimo gambiarrados.
Encontramos Thalita e Daisy na saída para a estrada de Lagoinha, e decidimos ir por ali mesmo. Mais alguns trechos com quedas de barreiras, trânsito em meia pista e lama na estrada. A entrada de São Luís estava bloqueada, com uma fila de carros esperando a liberação. Tomamos a Oswaldo Cruz em direção a Ubatuba. Na outra entrada de São Luís, a mesma cena: muitos carros esperando. Tínhamos escutado o boato de que o quilo do arroz estava sendo vendido a R$ 25 em São Luís, por conta da carestia de muitos e da ganância de poucos.
Um pouco adiante na estrada, conseguimos ver uma parte do estrago - um monte de construções destruídas à beira do rio. Mais um pouco de tristeza se somando ao cansaço - São Luís tem o carnaval mais animado da região e uma bela tradição cultural. Como será que vão reagir a essa perda imensa? Chegamos em Ubatuba alguns minutos antes dos dois carros que tinham saído antes - sem informação sobre a estrada de Lagoinha, eles tinham decidido andar os quilômetros a mais indo até a Dutra.
À noite, como bons gauleses, fizemos o banquete de fim de aventura - todas as carnes do churrasco foram trazidas dentro de uma geladeira de isopor, e não perdi muito tempo até acender a churrasqueira. Celebramos do nosso modo, e ficou a sensação de que não podemos reclamar de nada: uma circunstância natural que levou a algumas catástrofes nos encontrou todos juntos. Tivemos a oportunidade de testar nossa resposta coletiva à adversidade, e ela foi muito boa. Não tivemos nenhum acidente, e tivemos muito mais sorte do que todas aquelas pessoas que ainda estão - até hoje - isoladas em estradas de terra em Cunha. Não pude evitar de pensar em quão complicada é uma cidade que só tem uma saída - para Guaratinguetá. Ubatuba, com todos seus problemas, tem pelo menos três saídas por terra, além do mar. Certamente, nas próximas vezes a pequena bolsa de ferramentas e conveniências que eu levo no porta-mala do Uno vai virar um kit de sobrevivência mais completo.
Fica aqui um pedido para todo mundo que puder: por favor, mandem ajuda material e energética pro pessoal que continua isolado em Cunha e em São Luís. A situação por lá está bem complicada. Pouca gente tem a sorte que nós tivemos, e tenho certeza que histórias piores que essa - que na verdade não é nem um pouco ruim - ainda vão ser escritas. Existem várias iniciativas levando doações de alimentos e outras coisas para o pessoal de lá. Aqui em Ubatuba, a Câmara Municipal e a Guarda Mirim estão fazendo a logística.
Obrigado pela atenção. Agora sim, fim.