(continuação desse post)
A chuva havia parado totalmente. Percorremos o curto trecho de asfalto até a saída para a estrada de terra da Barra sem problemas. Em pouco tempo, paramos no mesmo lugar da noite anterior: um rio cruzava a estrada. Nem sinal do carro que estava lá na madrugada. Descemos para verificar se era possível atravessar. Peguei um pedaço de madeira para testar a profundidade. Em alguns pontos, chegava a meio metro. Em um passo equivocado, afundei tanto a perna que a bota encheu de água - encharcando de novo a meia que tinha secado pela manhã.
O vizinho com a Ranger, que nos acompanhou desde a pousada, tentaria passar primeiro - pela esquerda, que parecia mais tranquila. Como não sabíamos se poderíamos seguir em frente com os carros normais, Thalita e Irene iriam de carona na caçamba dele. Ele acelerou - até um pouco demais na minha opinião - e passou corcoveando. Decidimos tentar. A Ecosport do Ricardo passou fácil, a gente não teve problemas com o bom e velho Uninho, e nem o Michael com a Saveiro. Já o Gol da Irene passou, mas logo depois apagou. Tentamos empurrar, e nada. Abrimos o capô. É um saco chegar nas velas do Gol - para tirar o filtro de ar e o suporte dele, precisamos de uma chave de fenda - que felizmente um metarecicleiro sempre tem por perto ;). Mas as velas não pareciam ter molhado. Acabamos amarrando o Gol na Ecosport e seguimos jornada.
Pouco mais de um quilômetro adiante, mais uma parada, ao lado da pousada Sotaque Mineiro. Um mau sinal: nem a ambulância nem o jipe da polícia (acho que era uma Troller ou uma JPX, não tenho mais certeza) conseguiam ir adiante. Um caminhão da Elektro passava em sentido contrário, e o pessoal nos deu mais alguma informação - havia muitas barreiras caídas na estrada de terra, e mesmo que fossem limpas não haveria como chegar na Barra porque algumas pontes haviam "rodado" - mais um termo que adicionei ao meu vocabulário.
O dono da Ranger disse que tinha autorização para deixar o carro no sítio em frente, e que continuaria a pé. Deixamos também os carros ali, e nos dividimos em dois grupos: Eu e Carol, Daisy, Thalita, Thyago e Fernanda desceríamos os oito quilômetros de terra, e o restante tentaria ficar pela pousada até a gente dar notícia. Saímos meio apressados, levando um pacote de polvilho, os queijos e uma garrafa de água, além de casacos e alguns pertences pessoais.
Logo nos primeiros metros, entendemos por que era impossível seguir de carro. Marcas de pneus grandes. Entre os pneus, a lama bateria no meu joelho. Duas grandes quedas de barreiras. Seguimos em frente. Descer aquela estrada de terra com aquelas pessoas não poderia deixar de evocar a sociedade do anel - os hobbits saindo pela primeira vez do Condado. Fellowship of the polvilho!
Eu nunca tinha feito aquele trecho a pé - no máximo tinha escutado a Irene contando de quando desceu sozinha, durante a noite. Existe uma certa magia de conhecer a estrada aos poucos - um outro ritmo, evocando a outras épocas. Dias depois eu li em algum lugar que Cunha tem mais de 2000km de estradas de terra. Pensei bastante na época da colonização, na Estrada Real que ligava as Minas Geraes aos portos. Um jipe da polícia voltava. Não haviam conseguido passar. Marcas de trator, também. Comentamos sobre como seria bom ter um cavalo naquela hora.
Fomos ultrapassando uma série de obstáculos - perto do Marianinho, um pedaço da estrada tinha virado rio, com correnteza e tudo. Precisamos margear por cima da grama, segurando com cuidado no arame farpado. Mais para a frente, outra barreira no meio da estrada. Acho que foi nessa que o Thyago afundou o pé na lama e o tênis ficou - precisou se equilibrar pra voltar o pé no lugar exato e puxar de novo. Na barreira seguinte, uma grande árvore tinha atravessado a estrada - muitos galhos e arame farpado. Do outro lado, um cara perguntava se havia como passar. Falamos com as moradoras da casa em frente, que contaram que um pessoal já tinha atravessado por ali. Eu e Daisy pedimos licença para cruzar a porteira e passar por dentro do terreno delas, costeando a faixa de terra entre uma construção e o rio que estava caudaloso. Chegamos do outro lado antes do resto da galera.
Depois, mais uma barreira "normal" em uma curva, e na sequência uma que ainda assustava dos dois lados - barrancos íngremes acima da estrada à direita, e para baixo à esquerda. A cada cinco ou dez minutos, encontrávamos alguém passando, geralmente em sentido contrário. Thalita conversava com todos, pegando dicas da estrada e notícias sobre a família do Manolo. Em uma dessas conversas, um pai e um filho nos avisaram que a barreira seguinte seria a pior. De fato, a barreira logo antes da pousada Barra do Bié era uma das maiores, e tinha cara de que ainda não tinha estabilizado. Passamos com cuidado, e quando estávamos quase no fim ouvimos o Mauro chamando - ele e Irene se juntavam ao nosso grupo.
Na frente da pousada Barra do Bié, encontramos dois ou três casais de Sampa em roupas de férias. Tinham esperança de ir embora naquele mesmo dia. Contamos para eles sobre as condições da estrada de terra e da Cunha-Guaratinguetá. Eles não levaram muita fé no que falamos, disseram que não era possível, precisavam voltar. Impossível, pessoal. Continuamos. Na ponte ao lado do dentista, tivemos certeza de que tão cedo não seria possível chegar na Barra de carro - os troncos da ponte continuavam, mas as travessas das duas cabeceiras tinham sumido. Pelo rastro da areia, vimos que o rio tinha passado ali por cima. Na reta seguinte, encontramos dois homens que estavam vindo do local do acidente. Um deles, descobri mais tarde, morava ao lado da casa que foi soterrada. Ambos denotavam cansaço e tristeza. Contaram que a filha do Manolo tinha sobrevivido, mas por enquanto era a única. Estavam indo até a pousada para telefonar e chamar o resgate de helicóptero.
Perto da ponte de concreto - que suportou as chuvas bravamente - encontramos o Zezé, que nos acompanhou por um trecho e contou mais sobre o acidente. Já tinham encontrado alguns corpos, mas ainda faltava o filho da sobrevivente. O pessoal estava cansado, mas ainda tinha esperança. Enquanto conversávamos com ele, ouvimos o helicóptero chegando. Um grupo de pessoas o seguiu enquanto ele descia no terreno seguinte, da veterinária. Alguém avisou pra tomarmos cuidado, pois os cachorros eram bravos. O pessoal do resgate pôs macas e outros equipamentos em uma picape que deve ser do pessoal de lá, e partiram o mais rápido que puderam. Durante todo o trecho em que passamos por ali, o clima ficou um pouco pesado. Ficamos mais em silêncio, tentamos ficar mais próximos, tentando digerir o episódio todo.
Encontramos mais um pessoal que contou que a ponte seguinte tinha rodado totalmente - não sobrara nada. Não havia como atravessar o rio naquele ponto, então precisaríamos dar a volta pelo mato. Ouvindo as indicações do pessoal, passamos uma porteira, atravessamos um rio, subimos até a casa de um pessoal - André, se não me engano - e perguntamos sobre o caminho. "Não desçam pelo caminho da porteira amarela". Passamos por um chiqueiro e alguns perus, continuamos por uma trilha. Passamos uma cancela, descemos um caminho e lá embaixo percebemos que havíamos passado pela porteira amarela - ela não era tão amarela assim. Chegamos de novo ao rio, sem passagem. Tornamos a subir o morro, passamos por uma casa vazia com um carro ao lado. Não lembro em que ponto (acho que na verdade foi antes da porteira amarela), seguimos uma trilha por dentro de um pedacinho de mata e ao fim pulamos uma cerca de arame farpado - Thyago ainda segurou o arame para um grupo que vinha do outro lado. Passamos por mais uma casa, cumprimentamos o pessoal, Thalita deu notícias rápidas sobre o caminho. Acabamos saindo logo depois da ponte que tinha rodado. Nem sinal de madeira.
Estávamos chegando na Barra. Lá de cima da estrada, vimos o rio cujo leito normalmente não ultrapassa os quatro metros - havia multiplicado de largura. Lembrei naquelas imagens da foz ou do delta de grandes rios. Não esqueço a sensação de estar chegando em casa, reconhecendo cada curva da estrada. Ao chegar na Igreja da Barra, encontramos todo o pessoal que mora por perto. Demos as notícias da estrada. Dita nos abraçou, chorando, feliz porque teve notícias nossas. Entrei na fila do telefone público, mais disputado do que nunca. Tentei falar com o pessoal na pousada, mas o número que eu tinha estava errado. Acabei ligando a cobrar para meu pai em Porto Alegre, e pedindo que ele encontrasse o número certo na internet e ligasse pra contar que havíamos chegado bem.
A ponte depois da vila também tinha sofrido. Só não desceu o rio porque ficou escorada em um Pinheiro. Segundo o Zé Russo, eles tinham ficado isolados por lá - o nível da água subiu mais de três metros, ficando cerca de um metro acima da ponte. Na entrada do nosso sítio, um pedaço do caminho tinha caído dentro do rio - tivemos dúvidas se seria possível passar ali com os carros. Dentro do sítio, um pouco de estrago por conta da chuva - areia por todo lado, uma barreira rompida - mas nada que ofuscasse a sensação de voltar a uma área de conforto, e ver que o mais importante continuava lá. Entramos em casa, os cachorros estavam doidos, e o chão um nojo. Uma força-tarefa rápida para limpar tudo, e finalmente pudemos chegar - banhos quentes, roupas limpas... e meias secas!
Nosso plano para o dia primeiro era um churrasco, então na noite anterior havíamos deixado as costelinhas de porco descongelando. Catei limão para somar ao sal grosso e assei-as com batatas. Mauro abriu o barril de 5l de Heineken que a gente deu de natal para ele. Nos sentimos merecedores daquela celebração. Nessa noite, fizemos pouca música e fomos deitar cedo, depois que o pessoal foi assistir TV em um quarto e souberam sobre o desastre em Angra.
Mas o relato ainda não terminou. Amanhã eu conto sobre a reunião da galera.