2.. Somos contra o Movimento Tradicionalista Gaúcho, por identificá-lo como um movimento ideológico-cultural, com uma visão conservadora e ilusória sobre o Rio Grande, cujo sucesso se deve, em especial, à manipulação e ressignificação de patrimônios genuínos do povo, pertencentes aos seus hábitos e costumes.
3.. Somos contra o Tradicionalismo, porque ele não é a Tradição, mas se arrogou de seu representante e a transformou em elemento de sua construção simbólica, distorcendo-a, manipulando-a, inserindo-a em uma rede gauchesca aculturadora, sem respeito às tradições genuinamente representativas das diversidades dos grupos sociais.
4.. Somos contra o Tradicionalismo, porque ele não é Folclore, mas o caducou dentro de invernadas artísticas e retirou dele seus aspectos dinâmicos e pedagógicos; o seu apresilhamento ao espírito e ao sentido do pilchamento do estado está destruindo o Folclore do Rio Grande do Sul.
5.. Somos contra o Tradicionalismo, porque ele é um movimento organizado na sociedade civil, de natureza privada, mas que desenvolveu uma hábil estratégia de ocupação dos órgãos do Estado, da Educação e de controle da programação da mídia, conseguindo produzir a ilusão de que o tradicionalismo é oficialmente a genuína cultura e a identidade do Rio Grande do Sul. A “representação” tomou o lugar da realidade.
6.. Somos contra o Tradicionalismo, porque, insensível à história e à constituição multicultural do Rio Grande do Sul, através de procedimentos normativos, embretou o rio-grandense em uma representação simbólica pilchada.
7.. Somos contra o Tradicionalismo, porque ele criou um calendário de eventos e, através de seus prepostos, aprovou leis que “reconhecem” o próprio tradicionalista como modelo gentílico, apesar de ser, em verdade, um ente contemporâneo, sem enraizamento histórico e cultural.
8.. Somos contra o Tradicionalismo porque identificamos nele a criação de instrumentos normativos usurpadores, com a ambição de exercer um controle sobre a população, multiplicando a cultura da “patronagem”, com a reprodução de milhares de caudilhetes que tiranizam os grupos sociais em seu cotidiano. Tiranetes que, com sua truculência, ditam regras “estéticas” e limitam os espaços da arte e da cultura, lançando o preconceito estigmatizador, pejorativo e excludente, sobre formas de comportamento e manifestações artísticas inovadoras ou sobre concepções do regional, diferentes da matriz “cetegista”, mesmo quando essas manifestações surgem no interior do próprio Tradicionalismo.
9.. Somos contra o Tradicionalismo, porque ele instrumentaliza política e culturalmente uma visão unificadora, como se a origem identitária do Rio Grande estivesse no movimento da “minoria farroupilha”, falseando sobre a sua natureza “republicana”, elencando um panteão de “heróis” latifundiários e senhores de escravos, como se fossem entes tutelares a serem venerados pelas gerações atuais e vindouras.
10.. Somos contra o Tradicionalismo, por ele se fazer passar por uma Tradição, desmentida pela própria história de sua origem, ao ser inventado através de uma bucólica reunião de estudantes secundaristas, em 1947, no colégio Júlio de Castilhos, em Porto Alegre.
11.. Somos contra o Tradicionalismo, porque ele se transformou em força institucional e “popular”, em cultura oficial, através dos prepostos da Ditadura Militar no Rio Grande do Sul.
a) Na verdade, em 1964, o Tradicionalismo foi incluído no projeto cultural da Ditadura Militar, pois o “Folclore”, como fenômeno que não pensa o presente, serviu de alternativa estatal à contundência do movimento nacional-popular, que colocou o povo e seus problemas reais no centro das preocupações culturais e políticas.
b) O Tradicionalismo usurpou, assim mesmo, o lugar do Folclore, e se beneficiou do decreto do general Humberto Castelo Branco, de 1965, que criou o Dia Nacional do Folclore, e suas políticas sucedâneas. A difusão de espaços tradicionalistas no Estado e as multiplicações dos galpões crioulos nos quartéis do Exército e da Brigada Militar são fenômenos dessa aliança.
c) A lei que instituiu a “Semana Farroupilha” é de dezembro de 1964, determinando que os festejos e comemorações fossem realizados através da fusão estatal e civil, pela organização de secretarias governamentais (Cultura, Desportos, Turismo, Educação, etc.) e de particulares (CTGs, mídia, comércio, etc.).
d) Durante a Ditadura Militar, o Tradicionalismo foi praticamente a única “representação” com origem na sociedade civil que fez desfiles juntamente com as forças da repressão.
e) Enquanto as demais esferas da cultura eram perseguidas, seus representantes censurados, presos, torturados e mortos, o Tradicionalismo engrossou os piquetes da ditadura - seus serviçais pilchados animaram as solenidades oficiais, chulearam pelos gabinetes e se responsabilizaram pelas churrasqueadas do poder. Esse processo de oficialização dos tradicionalistas resultou na “federalização” autoritária, com um centro dominador (ao estilo do positivismo), com a fundação do Movimento Tradicionalista Gaúcho, em 1967. Autoritário, ao estilo do espírito de caserna dos donos do poder, nasceu como órgão de coordenação e representação. Enquanto o general Médici, de Bagé, era o patrão da Ditadura e responsável, juntamente com seu grupo, pelos trágicos anos de chumbo que enlutaram o Brasil na tortura, na execução, na submissão à censura, na expulsão de milhares de brasileiros para o exílio, os tradicionalistas bailavam pelos salões do poder. Paradoxalmente, enquanto muitos freqüentadores de CTGs eram perseguidos ou impedidos de transitarem suas idéias políticas no âmbito de suas entidades, o Tradicionalismo oficialista atrelou o movimento ao poder, pervertendo o sentimento de milhares de pessoas que nele ingressaram motivados por autênticos sentimentos lúdicos de pertencimento e identidade fraterna.
f) Através da relação de intimidade com a ditadura, o MTG conseguiu “criar” órgãos estatais de invenção, difusão e educação tradicionalista, ao mesmo tempo em que entregou, ou reservou diversos cargos “públicos”, para seus ideólogos, sob os títulos de “folclorista”, “assessor cultural”, etc.
g) O auge do processo de colaboração entre a Ditadura e o MTG foi a instituição do IGTF - Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore, em 1974, consagrando uma ação que vinha em operação desde 1954. A missão era aparentemente nobre: pesquisar e difundir o folclore e a tradição. Mas do papel para a realidade existe grande diferença. Havia um interesse perverso e não revelado. A constituição do quadro de pessoal, ao contrário da inclusão de antropólogos, historiadores da cultura, pessoas habilitadas para a tarefa (que deveriam ser selecionadas por concurso público), o critério preponderante para assumir os cargos era, antes de tudo, a condição de tradicionalista. Assim, um órgão de pesquisa, mantido pelo dinheiro público, transformou-se em mais uma mangueira do MTG. Com o passar dos anos, os governos que tentaram arejar o IGTF, indicando dirigentes menos dogmáticos, invariavelmente, entraram em tensão com o MTG.
h) Essa rede de usurpação do público pelo Tradicionalismo, por fim, atingiu a força de uma imanência incontrolável. Em 1985, já na redemocratização, o MTG conseguiu que a Assembléia Legislativa instituísse o Dia do Gaúcho, adotando como tipo ideal o “modelo” tradicionalista.
i) Em 1988, com uma manipulação jamais vista na vida republicana, o MTG se mobilizou pela aprovação da lei estadual que estabeleceu a “obrigatoriedade do Ensino de Folclore”; na regulamentação, a lei determinou que o IGTF exercesse a função de “suporte técnico”, sem capacitá-lo pedagogicamente. De fato, passou a ocorrer uma relação direta entre as escolas e os CTGs. Dessa maneira, o Tradicionalismo entrou no sistema educacional, transgredindo a natureza da escola republicana como lugar de estudo e saber, e não de culto e reprodução de manuais. Hoje, os alunos são adestrados pela pedagogia de aculturação e cultuação tradicionalista.
j) Por fim, em 1989, a roupa tradicionalista recebeu o nome de “pilcha gaúcha”, e foi convertida em traje oficial do RS, conforme determinação do MTG.
E continua. Excelente contextualização.