A chuva deita-se leve sobre Ubatuba, uma camada conectando as vozes a conversar na sala, uma guitarra distorcida experimental do outro lado da casa, a ocasional tosse da pequena e algum suspiro do bebê. Sobre essa base espontânea, meu telinha soa de tempos em tempos avisando de mensagens que chegam. Imagino o que são, mas só as lerei daqui a pouco. Antes preciso escrever um texto, beber algumas cervejas e digerir o momento.
O som homogêneo da chuva sobressai e leva a mente para longe. Há poucos minutos, comentei com meu pai que o destino todos sabíamos, só o itinerário e o tempo é que variavam.
É curiosa essa coisa das gerações. Eu cresci de certa forma habituado à existência de bisavós vivos, presentes e relativamente lúcidos. Conheci uma bisavó materna e todos os bisavós e bisavôs paternos. Com os últimos, recordo de muitos episódios concretos na infância, adolescência e juventude. Minha última lembrança da (bisa)vó Ruth, por exemplo, é de um telefonema em que ela mandou um beijo para Carol, então minha nova namorada naquela época em que eu ainda me acostumava com a vida em São Paulo. Isso aconteceu já neste milênio de agora. Eu era maior de idade, já andava com a mulher que um dia viria a ser mãe de meus filhos, e ainda falava ao telefone com a minha bisavó. Pouco tempo depois ela se foi, a última de sua geração diretamente ligada à minha existência.
Mais ou menos pela mesma época que minha última bisa se ia, por outro lado, Carol já perdia suas duas avós. Se não estou enganado, ela não chegou a conhecer nenhum bisavô ou bisavó. Lembro que fiquei um pouco surpreso quando descobri isso, como se fosse usual andar por aí e conversar com os bisavós ao telefone. Não, fui eu que nasci filho de um casal bem jovem e pude chegar a andar de caminhão com um avô que os dirigia antes de se aposentar, e ver o outro avô jogar futebol no parque. Cresci vendo meus avôs como alguns colegas viam os pais, e os bisavós como muitos meus contemporâneos viam os avós.
Quis o destino, e os métodos contraceptivos, que eu só me tornasse pai depois dos trinta e alguma coisa. Isso, claro, tem um efeito de espelho temporal muito maluco. Quando minha primeira filha nasceu, eu estava no fim do retorno de Saturno. Meu pai, com a mesma idade um par de décadas antes, já tinha um filho de onze anos e duas filhas mais novas. Como eu seria em situação semelhante? Não consigo imaginar. Espelhos de Saturno, perguntas ao tempo.
Minha filha, hoje com quatro anos, chegou a conhecer todos os bisavós e bisavôs paternos. Lia, Claudio, Ernesto e Therezinha. Não sei o quanto ela vai lembrar deles quando crescer, nem quanto dessa lembrança vai ser daquelas memórias que a gente acha que tem mas na verdade construiu a partir de fotos e histórias ouvidas e repetidas. Mas objetivamente, ela chegou a tocar e ser tocada, pele com pele, por todos os quatro. Já o bebê que neste momento dorme no confortável abraço da mãe, este não sabe que uma hora atrás perdeu seu último bisavô homem. E provavelmente, porque dessas coisas ninguém tem certeza, provavelmente não sabe que antes mesmo de ser concebido o outro bisavô já havia partido para outras dimensões deste velho Universo. Ou, como afirma sua irmã, já havia "ido para a estrelinha".
Ano passado, então, foi-se o primeiro da geração de meus avós. Na época que ele faleceu, eu queria escrever alguma coisa mas não consegui. Algo havia surgido. Uma espécie de ameaça anteriormente remota que decide dar sinais de vida. Como um terremoto em Ubatuba, talvez. Aquilo ficou parado, num silêncio que tinha a ver até com a personalidade que se ia. Parecia também que havia um equilíbrio tênue que me permitia, já na segunda metade dos trinta, haver perdido um avô mas manter o outro. Hoje, entretanto, as circunstâncias mudaram e abre-se de novo aquele canal. Acho que consigo finalmente escrever sobre os avôs que se vão. Mas preciso começar pelo primeiro que se foi há mais de ano.
Ernesto Schmidt, pai de minha mãe, caminhoneiro aposentado e posteriormente empregado como motorista particular de uma senhora. Lá de Venâncio Aires, capital da erva mate. Pai austero que criou os filhos com muito silêncio, apesar de ter sido um gaiteiro festeiro na juventude. Uma presença firme, mas quieta, até o fim. Alto, na maior parte da vida. Avesso a médicos e medicina na maior parte da vida, até que a inflamação no esporão, a catarata e o coração o obrigassem a capitular (e ainda assim, houve episódios depois dos oitenta em que fugiu no hospital na calada da noite). A sala de estar do apartamento na Olavo Bilac, com as duas televisões. Ernesto no futebol, Therezinha no Silvio Santos. Obviamente, a TV do Ernesto ficava sem volume. O copinho de cachaça, mais tarde o copo americano com cerveja Kaiser morna. Por fim, só o mate mesmo. Quente, bem quente. Entregando a cuia e esperando de volta em poucos segundos. O cabelo ralo, branco, fino. Os óculos de aros grossos. As calças sociais, e mais tarde os jeans. Aquele monte de rugas. A mão grande, que repentinamente subia quase até o teto e voltava com tudo na coxa do neto ou neta mais próximos enquanto Ernesto proferia uma de suas expressões usuais. "Animale" é a de que mais recordo. Às vezes também saia um "é isto", com um inexplicável chiado carioca no "s" de "isto". E sempre um sorriso amoroso à neta e aos netos, mesmo nas muitas vezes em que não tinha muito assunto. Ernesto, que com Therezinha trouxe a metade germânica do meu DNA, seja lá o que isso signifique.
Ernesto, lembro bem, que quando eu tinha algo em torno de oito anos me ensinou muito mais do que ele mesmo poderia imaginar sobre as questões de cor da pele: falou que achava bonito que meu melhor amigo era "um preto". Disse em seguida que quando jovem ele mesmo era racista, mas com o tempo havia aprendido que aquilo estava errado, e achava muito bom me ver brincando feliz com meu amigo. Até então eu não sabia que meu amigo era "um preto", não tinha aprendido aquilo em casa. É uma coisa algo triste de aprender, mas imagino que útil. Ernesto, caminhoneiro e motorista, que me ensinou a regular a lenta de carros carburados. Que na minha infância tinha um Corcel II vermelho (com seu peculiar som de pisca) e profissionalmente dirigia um gigantesco Landau. Lembro dele, alinhado, me levando junto quando fazia trabalhos de office-boy para a Dona Adiles no centro de Porto Alegre. Eu ficava naquele imenso banco traseiro do Landau, protegido por plástico transparente, brincando nem lembro do quê. Meu avô, que sempre me impressionava na praia em Capão com suas mãos de retroescavadeira cavando e construindo castelos. As mãos de caminhoneiro, às quais minha avó sempre recorria na hora de torcer roupas.
Em dezembro de 2012, telefonei para o Ernesto em seu aniversário. Dei os parabéns e ele respondeu de bate-pronto: "isso não é nada, no ano que vem é noventa". Guardei esse recado, e no ano seguinte fui com Carol e nossa filha para celebrar a data com o vô. Encontrei alguns parentes queridos e outros dos quais nem lembrava no salão do Copacabana. Lembro do momento em que percebemos que o Ernesto, apesar de feliz com toda a colonada ali em volta, decidiu que era hora de se concentrar em seu prato e simplesmente desligou o aparelho de surdez. Precisava de seu tão valorizado silêncio. Comeu, vestiu o chapéu e despediu-se das dezenas de parentes. Era hora da soneca pós-almoço, provavelmente hábito dos tempos de estrada. Três meses depois, em meio a mais um veraneio em Capão, ele iria para a estrelinha.
Pronto, escrevi sobre o Ernesto. Isso estava congelado em algum lugar aqui dentro havia um ano e meio. E só emergiu por conta daquilo que aconteceu duas horas atrás. O velho guerreiro também aceitou ir para a estrelinha. E isso muda alguma coisa profunda. Como falei antes, este bebê que dorme aqui sereno não vai conhecer Ernesto nem Claudio. É uma pena.
Parei de escrever um pouco. Li as mensagens de meu pai e irmãs. Muito tarde para responder, agora. Fui ao banheiro, levei o bebê para o berço, respondi alguns emails de trabalho, me perdi em redes sociais por tempo controlado. Peguei a quinta cerveja e encontrei outro poleiro para continuar escrevendo. A chuva lá fora havia ficado mais forte, mas agora já está levinha, dando sinais de parar. Já foi suficiente para estragar a praia de amanhã e talvez até o mutirão da escola, mas não deve ter chegado a encher a cisterna. Bebê resmunga. Fico quieto esperando um choro que não vem. Volto a bater dedos aqui, para escrever sobre o tema de hoje que é a jornada de Claudio Bacelar da Fonseca em direção à estrelinha.
É curioso que eu tenha o impulso de escrever "é curioso" tantas vezes. Talvez seja um vício recente de escrita, ou então alguma muleta exatamente pelo fato de que estou escrevendo pouco. Quando cheguei a Sampa, eu usava bastante a expressão "é engraçado", mas descobri que paulistas não achavam graça das situações que eu assim descrevia. Daí o "é curioso". Mas também lembro de um amigo colombiano me contando que alguma situação era, em castelhano, "graciosa". E essas palavras meio primas entre português e castelhano que soam engraçadas, ou curiosas, os tais falsos cognatos (e convenhamos, que palavrinha bem feia essa, cognatos).
Eu precisei ir para a Espanha para descobrir que tinha alguma facilidade com o castelhano, provavelmente adquirida no contato com a parte ibérica da família que vivia na fronteira com o Uruguay. Minha avó Ana Lia é, até onde sei, de uma família antiga de Sant'anna do Livramento. Mas seu agora falecido marido era de Rosário do Sul, filho de um certo Felisberto Filho de origem lusitana mais recente. Honestamente não recordo se meu bisavô, que todas as gerações chamavam de Vô Beto, nasceu em Portugal e veio jovem para o Brasil ou se já era brasileiro filho de imigrantes. Mas era um bom português, padeiro e dono de estabelecimento, além de inventor de pequenas soluções domésticas. Lembro do sabão de abacate, de um sistema de molas para abrir uma portinhola em sua casa em Rosário. Aos oitenta e poucos anos, Vô Beto fazia sua caminhada acelerada na praia de Cidreira. Quase um cooper.
Daquela época, temos uma foto das quatro gerações: (bisa)Vô Beto, Vô Claudio com suas pernas fortes, meu pai antes dos trinta e eu, com uma viseira na testa e pisando em uma bola de futebol. Como se conseguisse enganar alguém. Os dois a meu lado na foto eram bons de bola. Meu avô chegou a jogar no Grêmio Santanense, além de apitar jogos no interior do Rio Grande do Sul. E ele frequentemente dizia que meu pai é que era o craque da família. Claudio-pai tinha, se bem lembro, o pé tamanho 36. Seu filho, meu pai, tem pé 38. Eu já sou 41 ou mais, bom para beque. No telefone, há pouco, meu pai contou que o corpo do vô será cremado e as cinzas dispersas no Beira Rio. Para quem não é gaúcho o Gigante da Beira Rio é o estádio do Sport Club Internacional. Hoje deve ter outro nome por causa da copa, mas não sou muito do futebol. O estádio foi inaugurado em algum dia quatro de abril, também data do aniversário do meu avô. Lembro que uma das muitas histórias inverossímeis que ele contava (tinha aquela lábia de vendedor que envolve as pessoas em causos, mesmo que inventados na hora) era a respeito de não lembro qual episódio em que viu de dentro do estádio algo acontecer na ponte que atravessa o rio (estuário) Guaíba. Quem conhece o Beira Rio sabe que não existe hipótese de alguém ver qualquer coisa na ponte desde dentro do estádio, mas essa flexibilidade de interpretação faz parte do legado. De todo modo, era sócio fundador do estádio, e meu desinteresse por futebol ainda maior que o do meu pai deve ter parecido estranho ao vô. Mas na infância chegamos a ir juntos a muitos jogos no Beira Rio. Tenho enrolada em meu pescoço a camisa oficial do Inter, comemorativa dos cem anos do clube, em cujas costas estampam o nome FONSECA e o número 76. Presente de aniversário do meu pai para ele. Ano passado o vô me deu a camisa, sabido que só ele das coisas e ritmos da vida.
Vô Claudio era filho de padeiro e padeiro ele mesmo. Foi proprietário da Padaria Fonseca, conhecidíssima em Sant'anna do Livramento nos anos setenta - época em que chegou a frequentar o Club Campestre. Mudou-se para a capital com a família por motivos que desconheço, mas agradeço. Se não estou inventando de memória, meu avô chegou a ter uma padaria em algum lugar de Porto Alegre, talvez na Getúlio, e seu filho homem mais velho, o segundo da prole, trabalhava no caixa quando encantou-se por uma alemoa que lá comprava o pão para a família. O resultado disso sou eu, se a história não diverge muito da realidade.
No fim dos oitentas, o vô retornou a Livramento e montou uma Padaria Fonseca no bairro Fortín e depois outra se não me engano em uma rua Silveira Martins, ou algo parecido. Lembro no Fortín do padeiro principal, do gigantesco forno a pilha (de lenha), da textura do balcão do caixa, de aprender a dar troco errado para uruguaios, de meus tios trabalhando pesado. Era uma padaria mais tradicional e espaçosa, ao contrário da outra. Lembro da antena de radioamador esticada por sobre o carro e um camarada chamado Airton. Da Calle Sarandy, dos Free Shops, do prédio e depois a casa num terreno em declive onde os avós moravam. Da caixa registradora analógica, com botões de metal. De ficar atento às cotações do dólar e do peso. A vida na fronteira, que eu vivenciei por poucos verões mas me marcou muito. Nas ruas de Livramento, lembro das persianas de plástico perfuradas de granizo. De meus queridos tios, um então ainda colado aos pais, o outro já casado e com filhas, vivendo sua vida. De uma tarde em um clube cheio de piscinas com o Toninho e família, de aprender a sovar uma massa de pão com o Lafa.
Alguns anos depois, já em Porto Alegre, eu aprenderia com o Lafa um monte de outras receitas: massa folhada, ravioli, pizzas, coxinhas, croquetes. Assistia maravilhado a ele produzindo quindins. E comia mil-folhas como um desesperado. Já era outro estabelecimento, o Bem Pensado, no coração do Bom Fim. Foi criado pelo meu pai como uma loja de congelados, com algumas coisas adicionais, como um negócio para o vô tocar. Meu vô vivia no Assunção, um bairro relativamente distante, a uma quadra do Guaíba, onde me levou algumas vezes pra pescar lambaris. A casa era grande, com uma edícula onde vivia meu tio, espaço para um churrasco e futebol e um casal de pastores alemães chamados Trovão e Faísca. O carro do vô era uma Caravan 77 prateada de três marchas e banco inteiro, o primeiro carro que dirigi.
Nessa época, vô Claudio teve um episódio médico forte. A carótida estava totalmente entupida. Talvez (e este é um talvez irônico, percebam) isso tivesse alguma relação com o fato de que ele comia três ovos fritos por dia, às vezes um hambúrguer de gado misturado com soja e bem frito com queijo derretido por cima. Ou com o hábito de fumar cachimbo. Ou com o whisky e seus parentes. Nos anos oitenta, meu avô de baixa estatura (menos de 1m70) ficou bem gordo. Ele conta que chegou aos 100kg. Nunca duvidei, ao ver as fotos. Mas ali naquele começo de anos noventa, ele foi parar no hospital e quase se foi bem cedo. Deu trabalho, e lembro de muito stress na família em torno do episódio. Anos depois, o vô dizia "o médico me falou pra escolher entre o trago ou o açúcar - e NUNCA MAIS pus um doce na boca".
De fato, Fonsecas desta cepa bebem. Bebemos. E seu CBF, Claudio Bacelar da Fonseca, tinha isso como identidade cultural. Nas festas de família era o bêbado barulhento, que começa a chamar o nome da patroa. LIA! LIA! Mas todo mundo que o conhecia já sabia de antemão, e não ligava. Barulhento. Um dia, quando meu pai morava na João Pessoa, lá no comecinho dos anos noventa, meu vô veio visitar. Eu tinha no meu quarto uma bicama que armávamos quando alguma das minhas irmãs vinha dormir em casa. Cedi minha cama para o vô e fui para a de baixo. No meio da noite, meio sem perceber, fugi dos roncos do vô e fui dormir no sofá da sala. Quando dormia depois de beber, às vezes também acordava gritando.
Mil causos como esses. As valentias do passado. As brigas no trânsito. A vida na fronteira. Já mais tarde, meu avô vendendo relógios Casio. Trabalhando, já depois de aposentado, na fábrica de pizza de um amigo da família. O vô e o enxerto de pele na perna, que anunciava quando o tempo ia mudar. Me levando para acampar em Morros dos Conventos. Brigando com a vó. Esculpindo com o canivete em pedaços de madeira encontrados na Redenção. Me levando para caminhar na Avenida Atlântica e para beber um chope na sequência. Com aquele cabelo preto penteado para trás, e mais tarde o cabelo já branco cortado rente à máquina pelo meu pai. Sempre no mesmo dia do mês. Anotando na caderneta a duração das lâminas de barbear, das lâmpadas, sei lá mais do quê. Sendo o cara mais carinhoso do mundo. Felipe... gritava ele, já passado no álcool. Bipe... tê amo!
Eu também te amo, vô. Faça uma boa viagem para a estrelinha. E depois conta pra gente sobre os bares do caminho...
PS.: as seis cervejas de ontem me aconselharam a não publicar este texto. Podia tê-lo feito. Corrigi pouca coisa e lá vai. Hoje passei o dia inteiro vestindo a camisa do inter que foi de meu avô. Me contaram que foi bonita a cerimônia de despedida da cremação. Deu saudades dos meus avôs e das famílias em torno. Seguimos o baile, de todo modo. Obrigado, vô Claudio. Obrigado, vô Ernesto.