Encontrei aqui um txt e me liguei que ainda não tinha publicado minhas anotações da volta ao Brasil.
Diário da saída
Domingo
Aletta caiu outra vez, vou fazendo notas aqui no EEE. Usando o gedit, que configurado direitinho é uma beleza.
O fim de semana foi regado a álcool de um jeito que eu não fazia há algum tempo. Encontrei amigos, menos do que gostaria (agenda, viagens, sábado, ressaca) mas ainda assim divertido.
Como a nossa passagem tem o estúpido limite de UMA mala de 20kg, já tínhamos enviado por correio duas caixas com coisas. Hoje começamos a selecionar o que deixar pra trás. Um dos mitos pessoais que eu cultivo é a leveza e a agilidade, então esse exercício não é novo: escolher o mínimo necessário de roupas, as ferramentas de comunicação e dois ou três amuletos ou objetos carregados de significado, e todo o resto distribuir entre amigos. Nosso companheiro de apertamento ficou com uns apetrechos de casa, discos e o pretovelho, thinkpad velhinho que me serviu muito bem nesse último ano. A amiga-irmã que nos trouxe a vodka da Rússia ficou com algumas libras. Ainda assim, vinte quilos é reduzir demais. Empilhamos tudo na sala.
Nosso problema agora é a mala de livros. Já tirei os do momento, mas ainda sobraram uns 15kg de livros. Vão ficar em uma mala, esperando x próximx a ir de BCN pro Brasil.
Terça
Ontem saí pra resolver umas coisas na rua. Tomei um chá de cadeira, mas na paz. Voltei e ficamos até a madruga na função de encaixar tudo nas malas. Vamos dar uma forçada na bagagem de mão, e ainda tentar levar um guarda-chuva grande e um canudo com desenhos e pôsteres.
Deixar coisas para trás não é, não pode ser, questão de mera utilidade. Muitas coisas têm história. São lembranças condensadas, parte da vida. Óbvio que tem muita gente que exagera nesse sentido, a ponto de transferirem toda sua personalidade para seus objetos. Eu sei que vivo sem qualquer coisa. Mas, por exemplo, ler o Caos do Hakim Bey em PDF ou ler a edição em papel que eu comprei antes de uma viagem específica e já emprestei pra essa e outra pessoas faz uma grande diferença.
Começar um relato de viagem contando que não dormi direito já não é novidade. Essa noite até que consegui (algumas cervejas ajudaram), mas acordei com as pernas doloridas e o estômago estragado. Tudo tensão pré-viagem. Saímos pra dar um último rolê no parque aqui ao lado e curtir um sol de verão. Depois comemos um desayuno bem típico, pinchos de tortilla de calabacín y pimiento, guarnecido por pa amb tomáquet. Depois sentamos na pracinha em frente à biblioteca. Tive a impressão que o cenário deixava de ser tridimensional outra vez e voltava a virar uma foto, o processo inverso do que aconteceu nos últimos meses. Talvez fazer parte de uma cidade dependa disso, conseguir visualizá-la não como uma série de cenários e sim um ambiente. Não sei.
Quando deixamos a Alemanha, estávamos ansiosos por sair logo. Preparamos as coisas alguns dias antes, ficamos contando as horas para sair. Dessa vez, por mais que eu queira voltar logo pra amigxs, lugares especiais e feijão com farinha de mandioca, não sinto nenhuma pressa em sair. Barcelona, sei que muitos já disseram, deixa boas lembranças. Deixo aqui alguns amigos novos, um dos quais virou mais um quase-irmão.
Agora é escovar os dentes e começar a jornada.
---
No vôo Barcelona Zurich. O check-in, claro, foi uma merda. Passamos 17kg do peso máximo. Saímos da fila pra tirar coisas da mala. Deixamos alguns presentes que havíamos ganhado, uma garrafa de moscatell e mais algumas coisas. Na pressa, minha meias ficaram de fora. Idas e voltas, sacar dinheiro pra pagar o transporte da Cuca, nossa companheira canina, nos deram pelo menos uma margenzinha de 4kg. Convencemos eles de que tínhamos pouca bagagem de mão, o que não era verdade. E o acesso à sala de embarque ainda era na frente do check-in. Mas não deu galho. Também passei no balcão de tax free pra pegar de volta o imposto agregado do meu EEE. Achei que seria mais, mas com os 26 euros vou tentar comprar um cartão de memória no próximo free shop. Demoraram 20 minutos a mais pra abrir o portão de embarque, segundo eles por um atraso devido ao tráfego aéreo em Zurich. Não acreditei muito, até pela cena que vi - depois que o avião estacionou, só liberaram as pessoas pra sair depois que dois policiais vieram e saíram acompanhando um mano com cara de imigrante sin papeles. Triste de ver, o cara de cabeça baixa acompanhando os homi sem falar nada. Nessas horas é que bate o alívio de estar saindo desse jardim de infância cercado que é a Europa.
O vôo atrasou. Já era para termos pouco tempo de solo, uma hora. Agora acho que deve ser a metade disso. Medo de perder a conexão, de dar problema na tansferência da Cuca ou das malas. Mas enfim, nada a fazer além de esperar. Swiss pelo menos tem comida boa e chocolatinhos de sobremesa.
---
No meio do Atlântico. A conexão foi uma correria: descemos do avião, tomamos o trem até o outro terminal, passamos a verificação de segurança e já chegamos no portão na hora que os passageiros começavam a entrar. Sem aquele tempo pra beber algo, ir ao banheiro ou comprar presentes pras pessoas (e as lojas já estavam fechadas). Mas vale, tudo deu certo e estamos a caminho.
Como de hábito, não durmo no avião. Desliguei o wifi e baixei a luminosidade do EEE, e descobri que esqueci de instalar o xmahjongg :P
---
Na cama em sampa, noite de quarta. Segundo meus cálculos, 42 horas acordado. Desde a chegada:
Pouso normal. Alfândega sem problemas. Checagem veterinária, sem problemas. Gastar os últimos euros em bebidas chocolatinhos pra presentear amizades. No hall do aeroporto, oito pessoas se dispuseram a levantar às cinco da manhã aos 11 graus de temperatura e atravessar a cidade pra nos buscar. Das coisas insuperáveis de estar perto de casa, seja lá o que isso significa.
Atravessamos sampa. Feriado, mas ainda assim com trânsito. Das coisas que chamam a atenção de cara: o anonimato das ruas, que passam em silêncio, sem pedestres, sem vida. O medo em todos os carros com seus vidros fechados. As três peruas de polícia escoltando um quarto carro, preto. Bem mais pra frente, perto do parque Ibirapuera, a fila de mais de três quilômetros de carros da polícia, provavelmente se preparando pra alguma coisa ligada ao nove de julho. A neblina que vira céu quase totalmente ensolarado. As ruas conhecidas, a mistura de saudade e asco, de liberdade e paranóia que só sampa traz. O assunto das conversas é Pitta e Dantas. Quero comprar a edição especial da Carta. Não tenho reais. Meu cartão de banco está com uma amiga.
O dia passa rápido. Muitas conversas atrasadas, muitas idéias a colocar, posicionamentos a tomar, busca de harmonias e sinergias, outras perspectivas. Nos aguardaram com café da manhã, almoço preparado, cordas novas para o violão, cerveja e vinho. Muitos sorrisos. Saudades, saudades, saudades. Satisfação em sair daquele mundo individualista-nuclear europeu e precisar de novo negociar a privacidade e a individualidade no cotidiano.
Mais tarde reavi meu cartão de banco e fui à farmácia comprar escovas de dente e desodorantes. Estranhando os prédios altíssimos, os muros e as cercas elétricas.
De volta a casa. Um amigo chegou tremendo, tinha acabado de ser assaltado em uma esquina. Arma na cabeça por quarenta reais. Mais impressionante é que depois de 10 minutos ninguém comenta mais o assunto. Não é novidade. Mais um pouco de bebida, praticar outra vez as músicas de sempre a três violões.
Abraços, obrigados e boa noite.