Anotações de vôo

Ganhei uma carona de casa até o aeroporto de Congonhas, onde ia tomar o frescão até Guarulhos. Fui bem cedo, pra evitar problemas. Até chegar no aeroporto, usava havaianas e carregava as botas com pelos por dentro na mão. A previsão para Amsterdam era frio (para os nossos padrões). Domingão paulistano, aquela cidade impessoal, vazia de almas, em boa parte do caminho. A lua me acompanhava, dizendo boa viagem. Tentei fotografá-la, mas foto de celular é lixo.

O vôo para Amsterdam vai fazer uma escala em Lisboa. Check-in muito tranqüilo. Uma poltrona F, corredor interno na direita. Sem vizinhos: duas poltronas só para mim. Equipe de bordo simpática, e avião aparentemente novo. O sistema de multimídia, pessoal, com touchscreen e controle remoto, rodava Linux. Eu sei porque o meu travou, reiniciou o X, travou de novo, deu um reboot até funcionar. Engraçado que o fato de ser linux evitou que eu ficasse puto. Se fosse esperar o boot do windows, certamente teria reclamado com o comissário. Aliás, o comissário veio confirmar que eu queria comida vegetariana. Não queria. Mas o senhor pediu. Não pedi. Quem comprou minha passagem deve ter pedido. O senhor precisa se descadastrar, senão em todos os vôos da TAP vai aparecer como vegetariano. Ok. Menu impresso.

Até Lisboa, tudo ok. Cheguei até a dormir uns 20 minutos e depois uma horinha (eu nunca durmo em aviões, mas fica mais fácil ocupando duas poltronas). Passei liso na alfândega. Gosto de ouvir o sotaque português. Aeroportos são não-lugares. Eu costumo gostar das surpresas no hall, mas dentro das salas de embarque tudo é muito asséptico e frio.

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Nuvens brancas se estendem pela Europa continental. Um grande cobertor lá embaixo, segurando o inverno que eu já esqueci. Aqui no avião, estou de camiseta. Estranho pensar como estão as coisas lá debaixo da cobertura de vapor. Encontrar o sol é fácil, basta subir alguns quilômetros.

Na decolagem (descolagem, no mundo luso), percebi que se não gostei muito de Lisboa foi porque estava sozinho. Quem sabe daqui a alguns anos consigo passar uns dias lá com minha cúmplice de vida, e vou gostar mais. Pensei nas ruas do centro. Vi um pequeno veleiro navegando e lembrei da escola de Sagres, lembrei de Ubatuba. Lembrei da minha família portuguesa, do meu bisavô Felisberto Pereira da Fonseca que era inventor e vivia quase na fronteira do Brasil com o Uruguay. Quis partir de Lisboa e ir até a Galícia. Passar pela fronteira com a España, visitar a Fonseca, descansar a mente. Mas não vai ser tão logo. Planos para os futuros.

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Voar costuma ser um incômodo para mim. O ar, as pessoas, o lance de precisar ficar sentado. Mas nesse trecho LIS-AMS estava muito bem. Resgatei aquela parte de mim que gosta muito de viajar. A alma se agita, novidades vão aparecer, os lugares sempre têm surpresas. Fico feliz que também minha dama sinta essas coisas, essa coceira do movimento, essa ciganeza do espírito.

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Amsterdam
frio
Foi uma semana fria para mim. Os holandeses diziam que já está morno, o pior já passou. Verdade, mas continuo achando frio. No fim das contas, eu fiquei bastante enfurnado: o Stayokay Zeeburg, onde ficamos hospedados, era também onde comíamos e onde era realizada grande parte do wintercamp. Virando a esquina (mas também com um acesso interno) ficava o café Studio K, onde se realizavam outras atividades e onde bebíamos nas horas vagas. Não saímos muito de lá (a programação começava às 10h e ia até às 21h30, geralmente). Durante a semana, saí duas vezes para andar, uma para comprar meu computador. Finalmente conheci o raquelabe que o broda Jaromil montou. Parece que não vão durar lá, já tem uma carta de despejo, mas o lance tá bonito, com computadores e poltronas e tudo mais. Fomos uma noite pra lá, passamos no supermercado ali perto e trouxemos cervejas e frutas e outras coisas. Esse lado de Amsterdam que ainda é legal está desaparecendo. A especulação imobiliária e a sociedade consumista ocidental estão acabando com tudo. Uma merda. No sábado, perdi a primeira metade das apresentações (inclusive algumas que queria ter visto) para dar uma volta pela cidade. Nisso, fiz umas fotinhos.

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AMS-LIS. O sono veio me pegar. A noite foi curta. Como precisava estar no aeroporto às 4h25, saí cedo da festa de encerramento (ok, "festa" é exagero, mas eles chamavam assim). Antes das 11, já estava dormindo. Tinha passado na Centraal Station pra confirmar os trens até o aeroporto e já comprar o ticket.  Acordaria, tomaria um táxi até o trem e pronto. Levantei às 3h, fiz o check-out e fui pegar minha mala no armário ao lado da recepção. Faltavam vinte centavos. Uma moeda de 20. Voltou. Duas moedas de dez. Voltaram. Uma moeda de um Euro. Voltou. Fui até a recepção: não tô conseguindo tirar minha mala. "Não, não está funcionando". Como assim? "Está quebrado, agora só amanhã de manhã". Meu senhor, eu tenho que tomar um trem pro aeroporto daqui a 40 minutos. "Não posso fazer nada". Registrei feliz com o canto do olho que literalmente um bando de amigxs voltavam: alguns da festa ao lado, outros de uma balada eletrônica. Simona chegou perto, expliquei pra ela o que tava rolando. A notícia se espalhou. Voltei pro tio da recepção: meu senhor, eu tenho que voar pro Brasil, e meu passaporte está lá dentro. Isso é um crime. Se não tirar minhas coisas de lá, vou chamar a polícia. Em alguns segundos, um broda já estava pedindo o nome dos caras e ameaçando: se não resolvessem em vinte minutos, ele ia no squat dos amigos ali perto e voltaria com um pé-de-cabra. Um recepcionista ligou pra alguém e apareceu com uma pasta cheia de códigos. Tentou digitar, e nada. As meninas do genderchangers da Áustria ofereceram rachar o táxi comigo, direto até o aeroporto, pra não perder o tempo que levaria até a Centraal Station. O tiozinho continuava digitando o código. Eu só pensava no meu passaporte e no casaco, se fosse pelo resto eles podiam enviar depois. Ele voltou, ligou pro dono do hostel e só depois conseguiu.

Fiquei feliz de ter amigxs. E amigxs guerreirxs ;)

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Chega

No fim, uma conclusão: cansei de gringolândia. De ver as mesmas pessoas e aquele urbanismo bonitinho mas previsível. Especialmente em Amsterdam. Gentrificada, segundo locais. Já sem muito da graça, pra mim. E a crise como assunto do momento. Concordo com quem diz que essa gente é destreinada pra lidar com adversidade. Olham pro futuro e só vêem um muro. O mundo vai mudar mesmo nos próximos anos. E daquele jeito, quem sobrevive ao temporal é o junco que tem ginga, não o carvalho que tem força e estrutura.

Próximos anos: desviar, Ubatubar e Brasilizar. Muita coisa pra fazer por aqui.