http://ubalab.org/blog/por-que-eu-nao-falo-so-sobre-tecnologia
Estou articulando um festival internacional em Ubatuba no fim de outubro deste ano. É interessante perceber a reação das pessoas quando percebem que não estou propondo um evento sobre "computadores" ou "internet". Têm essa expectativa porque eu costumo me apresentar falando sobre a MetaReciclagem, cultura digital e outros assuntos. Entretanto, meu foco principal (nas iniciativas e contatos que articulo, nos projetos que desenvolvo, no mestrado) é estabelecer espaços de troca e ação nos quais coisas novas possam ser desenvolvidas por pessoas com formações diversas. E isso tem a ver com muitos assuntos ao mesmo tempo.
Aprendi a desconfiar da palavra inovação, que costuma estar muito associada a propósitos comerciais, mas confesso que não encontrei um substituto adequado para designar um certo impulso por transformação que costuma estar por trás desses espaços. Inovação para a cidadania, foi como escrevi recentemente em uma apresentação de slides para autoridades. Também não é uma explicação precisa (porque parece instrumental, utilitarista demais), mas toca em um ponto importante: os espaços de troca voltados à transformação (que eu frequentemente chamo de "laboratórios experimentais") precisam se situar no seu entorno, na cidade. Não somente estar localizados em algum lugar, mas precisam se relacionar com o que existe a sua volta, ter consciência do impacto que têm, trabalhar com potencialidades do bairro, da cidade, da região.
Já escrevi de forma mais extensa sobre isso em diversos textos e anotações. Propus a MetaReciclagem das cidades digitais, propus os labs experimentais como interface entre rede e rua (uma aproximação que muita gente está fazendo nessas últimas semanas), externei minha preocupação sobre a gramática do controle presente nos gigantescos projetos de cidades digitais. sugeri que iniciativas de intervenção urbana tinham um papel importante para levar uma postura hacker para as cidades, mas fiz algumas ressalvas em relação à profundidade dessa metáfora.
Em decorrência dessa curiosidade e humildes contribuições, acabei sendo convidado a participar de eventos sobre cidades criativas, cidades digitais e afins. Ainda no ano passado, estive em Medellín como palestrante das Jornadas Ciudades Creativas (que acontecem novamente no mês que vem, em Buenos Aires). Em janeiro deste ano, fiz uma participação remota no festival Transmediale, em Berlim, dentro de um painel que trazia também experiências europeias de cidades digitais criadas nos anos noventa, sob uma perspectiva inversa: tentavam criar contrapartes digitais das cidades concretas. Enfim, do meu ponto de vista, pensar cidades é uma extensão do pensar sobre labs e tecnologias.
Transmediale - remixando cidades digitais
Minha apresentação no Transmediale, ainda que prejudicada pela internet banda lenta de Ubatuba, foi uma retomada dos textos citados no parágrafo acima, com alguns acréscimos. À cidade como experiência social imediata e concreta, contrapus seus aspectos simbólicos: a cidade como uma justaposição de diversas narrativas, que frequentemente entram em conflito. E por aqui, a solução desse conflito já é previsível: manda quem pode, obedece quem tem juízo. A imagem contemporânea de cidade surge na Europa com uma agenda progressista: os grupos que se concentravam no entorno dos castelos eram essencialmente diferentes da então retrógrada população rural. As muralhas serviam como fronteira de identidade e proteção militar. Já dos lados de cá, a história é outra. Mesmo que nossas cidades não tenham origem em muros de contenção, elas também têm um aspecto bélico desde sua origem: eram extensão ultramarina da sociedade europeia, lutando contra a natureza e os "selvagens". Do ponto de vista da metrópole em Portugal, era a luta da civilização contra a barbárie (coitados dos povos nativos e das extensões de matas, já então fadadas a desaparecer). As cidades, assim, eram tecnologias de ocupação - e nesse sentido eram muito mais homogêneas e autoritárias do que suas similares europeias - obedeciam a uma autoridade que nem se localizava no território. Temos de origem o vício da centralização de poder: por essas bandas, a cidade enquanto tecnologia já chegou pronta, não foi uma evolução ao longo dos séculos (e milênios). As estruturas já estavam definidas, a ordenação da população idem. O objetivo da cidade era estabelecer uma determinada forma de organização social. E esse vício se perpetuou. Ainda hoje - como temos visto nas ruas nos últimos meses - o poder na cidade brasileira média não é uma construção coletiva e democrática. É sim a imposição violenta de uma ordem que serve a uma minoria pouco numerosa mas extremamente influente, sobre as costas de tudo aquilo que não se enquadra, de todo desvio, de toda busca por subjetividade, autonomia e direitos.
É aí que reside o perigo quando se aplicam princípios da cibernética na gestão pública. A cibernética é antes de mais nada um poderoso instrumento de controle, de identificação e correção de desvios, de imposição dinâmica e eficiente de uma lógica determinada de antemão. Interpretar a cidade como uma grande máquina que cria informação o tempo todo é quase óbvio. Mas é raro que se discuta a quem pertence toda essa informação, qual é o limite do poder do gestor público sobre ela, e de que forma eu enquanto cidadão (ou grupo social, ou organização, ou minoria subrepresentada nos processos políticos tradicionais) posso ter acesso e controle sobre ela.
São Paulo - efervescência, dez anos depois
Alguns dias depois da participação na Transmediale, fui a um painel sobre cidades digitais na sede da prefeitura de São Paulo, do qual também participaria o aliado James Wallbank, do Access Space. Subindo a serra de ônibus fiz anotações para uma apresentação, mas na hora disseram que eu teria metade do tempo que imaginei. Segue abaixo uma releitura de hoje do que eu ia falar naquele dia, mas que deve ter ficado atropelado.
Dez anos atrás, São Paulo era um lugar efervescente. Um monte de coisas estavam começando a acontecer. O cenário local de ativismo midiático, com forte influência internacional (mídia independente, seattle, mídia tática europeia) e nacional (Fórum Social Mundial, militância pela democratização da comunicação) travava contato com o mundo real da cidade cinzenta. Fundamental nesse sentido foi a realização do Mídia Tática Brasil, em 2003. A presença do recém-empossado ministro da cultura Gilberto Gil, com tudo que isso acarretou, também foi um momento crucial. Naquele ano e nos seguintes, um monte de iniciativas surgiriam a partir desse cruzamento. Dei minha versão para essa história em um caderno submidiático do descentro. Parte importante do ambiente que gerou esses contatos foi a existência dos Telecentros de São Paulo, projeto que cristalizou uma sede por políticas públicas ousadas e transformadoras.
Ignorando a armadilha da prática corrente das iniciativas de inclusão digital daquela época - treinar manobristas de mouse, ensiná-los a preencher e imprimir seus currículos, e operar o pacote de aplicativos de escritório da Microsoft -, os Telecentros comandados por Sergio Amadeu adotavam o software livre não somente como alternativa econômica ou técnica, mas essencialmente como afirmação política. Tinha a ver com autonomia, desenvolvimento local, soberania e liberdade. Os Telecentros não eram meros espaços temporários, de passagem, para pessoas que não tinham condições. Pelo contrário, muitos deles se posicionavam como verdadeiros centros comunitários, que davam boas-vindas à vizinhança. E, nadando contra as inúmeras restrições burocráticas que provavelmente se interpunham a um projeto dessa natureza, a coordenação dos Telecentros ainda buscava se aproximar de iniciativas mais radicais de apropriação de mídias, comunicação comunitária e criatividade. Os frutos dessa aproximação foram tantos que nem tento narrar. Posso entretanto citar um exemplo: uma parceria entre os telecentros de São Paulo e a então nascente cultura digital no Ministério da Cultura resultou na criação do esporo de MetaReciclagem na Galeria Olido - um espaço experimental importantíssimo onde fizemos muita coisa.
Me pareceu importante marcar essa referência histórica em uma apresentação para a prefeitura de São Paulo. Hoje em dia, as coisas parecem muito mais dispersas. Os talentos continuam povoando a cidade, mas estão todos ocupados com suas coisas, pagando contas, construindo seus caminhos individuais. O que aquele primeiro momento fez não tinha a ver com infraestrutura, mas com visão de mundo. Imaginação. Peço até desculpas a quem costuma ler meus textos: imaginação é uma palavra que tenho repetido muito por esses dias, e deve aparecer muito por aqui nos próximos tempos. Escuto muita gente falar que a administração pública no Brasil precisa de uma cultura de planejamento, e que planejamento é "identificar problemas e encontrar soluções para eles". Com todo o respeito a quem acredita nisso, encontrar soluções para problemas isolados é estupidez. Mais importante do que listar problemas e tentar priorizá-los (porque nunca haverá recursos suficientes para resolver todos) é conseguir imaginar futuros diferentes. Como é a cidade que a gente quer? Soluções concretas só podem vir depois que imaginarmos um ponto de chegada, ou pelo menos traçarmos um itinerário atraente. São Paulo tem um potencial imenso, tanto em termos de criatividade e inovação quanto de infraestrutura e recursos, para se tornar novamente um pólo de inovação tecnológica voltada a resultados sociais. Mas é necessário experimentar, imaginar, ousar. Dar menos atenção à engenharia de sistemas do que ao design ficcional.
Nesse sentido, existem poucas coisas mais equivocadas do que os projetos de cidades digitais que se veem por aí. Partem de um discurso importado sem adaptações, frequentemente o discurso publicitário da indústria de TI. Costumam se basear na imagem da cidade rica contemporânea - pós-industrial, idealista, racionalizada, com instituições estáveis, contando com espaços públicos de funções bem definidas (e claramente distinguíveis dos espaços privados), baseada na família nuclear, com uma diversidade controlada - de preferência em bairros bem delimitados, uma democracia representativa estabelecida, uma economia altamente formalizada e, principalmente, uma narrativa relativamente homogênea. Em uma cidade assim, as ferramentas digitais entrariam simplesmente para aumentar a eficiência da administração pública. No máximo para equilibrar oportunidades e aumentar a visibilidade da tomada de decisões, mas sempre com objetivos claros.
Mas a maioria das cidades brasileiras não é assim. Ou nenhuma. Como comentei acima, temos cidades autoritárias e com narrativas conflitantes. São também excludentes, fragmentadas, instáveis, informais, argentárias, dinâmicas, com famílias complexas, caoticamente diversas, desrespeitosas, violentas, passionais. Nessas cidades, a visão do digital como simples aumento da eficiência não faz nenhum sentido.
Para a sociedade, muito mais importante do que novas maneiras de ser controlada (câmeras, cobranças, impostos digitalizados) é apropriar-se das tecnologias de informação de maneira crítica. Que as pessoas e grupos não sejam meros usuários, mas inventores e reinventores dos propósitos dessas tecnologias. Iniciativas públicas que lidem com a desigualdade no acesso às novas tecnologias não podem se limitar a "ensinar" internet. Elas precisam "fazer" internet. É por isso que, além de escolas e centros de formação, precisamos igualmente de laboratórios. Espaços cujo objetivo não seja a inserção no mercado, mas a transformação social. Mais interessados em inovação nas pontas do que em inovação de ponta. Estamos construindo esses espaços, de maneira distribuída. Talvez seja o momento de identificá-los e contar essas histórias. Mas é importante inseri-las nas questões mais amplas de cidade. Porque tecnologia é só um detalhe do que fazemos.
Todas essas questões dialogam com as movimentações que pretendo concretizar nos próximos tempos em Ubatuba. Pensar e fazer outros futuros para a cidade. Promover intercâmbio. Refletir sobre ambientes, pessoas e coisas. Em breve anuncio as próximas etapas, que já estão no forno.
Estou articulando um festival internacional em Ubatuba no fim de outubro deste ano. É interessante perceber a reação das pessoas quando percebem que não estou propondo um evento sobre "computadores" ou "internet". Têm essa expectativa porque eu costumo me apresentar falando sobre a MetaReciclagem, cultura digital e outros assuntos. Entretanto, meu foco principal (nas iniciativas e contatos que articulo, nos projetos que desenvolvo, no mestrado) é estabelecer espaços de troca e ação nos quais coisas novas possam ser desenvolvidas por pessoas com formações diversas. E isso tem a ver com muitos assuntos ao mesmo tempo.Aprendi a desconfiar da palavra inovação, que costuma estar muito associada a propósitos comerciais, mas confesso que não encontrei um substituto adequado para designar um certo impulso por transformação que costuma estar por trás desses espaços. Inovação para a cidadania, foi como escrevi recentemente em uma apresentação de slides para autoridades. Também não é uma explicação precisa (porque parece instrumental, utilitarista demais), mas toca em um ponto importante: os espaços de troca voltados à transformação (que eu frequentemente chamo de "laboratórios experimentais") precisam se situar no seu entorno, na cidade. Não somente estar localizados em algum lugar, mas precisam se relacionar com o que existe a sua volta, ter consciência do impacto que têm, trabalhar com potencialidades do bairro, da cidade, da região.Já escrevi de forma mais extensa sobre isso em diversos textos e anotações. Propus a MetaReciclagem das cidades digitais, propus os labs experimentais como interface entre rede e rua (uma aproximação que muita gente está fazendo nessas últimas semanas), externei minha preocupação sobre a gramática do controle presente nos gigantescos projetos de cidades digitais. sugeri que iniciativas de intervenção urbana tinham um papel importante para levar uma postura hacker para as cidades, mas fiz algumas ressalvas em relação à profundidade dessa metáfora.Em decorrência dessa curiosidade e humildes contribuições, acabei sendo convidado a participar de eventos sobre cidades criativas, cidades digitais e afins. Ainda no ano passado, estive em Medellín como palestrante das Jornadas Ciudades Creativas (que acontecem novamente no mês que vem, em Buenos Aires). Em janeiro deste ano, fiz uma participação remota no festival Transmediale, em Berlim, dentro de um painel que trazia também experiências europeias de cidades digitais criadas nos anos noventa, sob uma perspectiva inversa: tentavam criar contrapartes digitais das cidades concretas. Enfim, do meu ponto de vista, pensar cidades é uma extensão do pensar sobre labs e tecnologias. Transmediale - remixando cidades digitaisMinha apresentação no Transmediale, ainda que prejudicada pela internet banda lenta de Ubatuba, foi uma retomada dos textos citados no parágrafo acima, com alguns acréscimos. À cidade como experiência social imediata e concreta, contrapus seus aspectos simbólicos: a cidade como uma justaposição de diversas narrativas, que frequentemente entram em conflito. E por aqui, a solução desse conflito já é previsível: manda quem pode, obedece quem tem juízo. A imagem contemporânea de cidade surge na Europa com uma agenda progressista: os grupos que se concentravam no entorno dos castelos eram essencialmente diferentes da então retrógrada população rural. As muralhas serviam como fronteira de identidade e proteção militar. Já dos lados de cá, a história é outra. Mesmo que nossas cidades não tenham origem em muros de contenção, elas também têm um aspecto bélico desde sua origem: eram extensão ultramarina da sociedade europeia, lutando contra a natureza e os "selvagens". Do ponto de vista da metrópole em Portugal, era a luta da civilização contra a barbárie (coitados dos povos nativos e das extensões de matas, já então fadadas a desaparecer). As cidades, assim, eram tecnologias de ocupação - e nesse sentido eram muito mais homogêneas e autoritárias do que suas similares europeias - obedeciam a uma autoridade que nem se localizava no território. Temos de origem o vício da centralização de poder: por essas bandas, a cidade enquanto tecnologia já chegou pronta, não foi uma evolução ao longo dos séculos (e milênios). As estruturas já estavam definidas, a ordenação da população idem. O objetivo da cidade era estabelecer uma determinada forma de organização social. E esse vício se perpetuou. Ainda hoje - como temos visto nas ruas nos últimos meses - o poder na cidade brasileira média não é uma construção coletiva e democrática. É sim a imposição violenta de uma ordem que serve a uma minoria pouco numerosa mas extremamente influente, sobre as costas de tudo aquilo que não se enquadra, de todo desvio, de toda busca por subjetividade, autonomia e direitos.É aí que reside o perigo quando se aplicam princípios da cibernética na gestão pública. A cibernética é antes de mais nada um poderoso instrumento de controle, de identificação e correção de desvios, de imposição dinâmica e eficiente de uma lógica determinada de antemão. Interpretar a cidade como uma grande máquina que cria informação o tempo todo é quase óbvio. Mas é raro que se discuta a quem pertence toda essa informação, qual é o limite do poder do gestor público sobre ela, e de que forma eu enquanto cidadão (ou grupo social, ou organização, ou minoria subrepresentada nos processos políticos tradicionais) posso ter acesso e controle sobre ela. São Paulo - efervescência, dez anos depoisAlguns dias depois da participação na Transmediale, fui a um painel sobre cidades digitais na sede da prefeitura de São Paulo, do qual também participaria o aliado James Wallbank, do Access Space. Subindo a serra de ônibus fiz anotações para uma apresentação, mas na hora disseram que eu teria metade do tempo que imaginei. Segue abaixo uma releitura de hoje do que eu ia falar naquele dia, mas que deve ter ficado atropelado.Dez anos atrás, São Paulo era um lugar efervescente. Um monte de coisas estavam começando a acontecer. O cenário local de ativismo midiático, com forte influência internacional (mídia independente, seattle, mídia tática europeia) e nacional (Fórum Social Mundial, militância pela democratização da comunicação) travava contato com o mundo real da cidade cinzenta. Fundamental nesse sentido foi a realização do Mídia Tática Brasil, em 2003. A presença do recém-empossado ministro da cultura Gilberto Gil, com tudo que isso acarretou, também foi um momento crucial. Naquele ano e nos seguintes, um monte de iniciativas surgiriam a partir desse cruzamento. Dei minha versão para essa história em um caderno submidiático do descentro. Parte importante do ambiente que gerou esses contatos foi a existência dos Telecentros de São Paulo, projeto que cristalizou uma sede por políticas públicas ousadas e transformadoras.Ignorando a armadilha da prática corrente das iniciativas de inclusão digital daquela época - treinar manobristas de mouse, ensiná-los a preencher e imprimir seus currículos, e operar o pacote de aplicativos de escritório da Microsoft -, os Telecentros comandados por Sergio Amadeu adotavam o software livre não somente como alternativa econômica ou técnica, mas essencialmente como afirmação política. Tinha a ver com autonomia, desenvolvimento local, soberania e liberdade. Os Telecentros não eram meros espaços temporários, de passagem, para pessoas que não tinham condições. Pelo contrário, muitos deles se posicionavam como verdadeiros centros comunitários, que davam boas-vindas à vizinhança. E, nadando contra as inúmeras restrições burocráticas que provavelmente se interpunham a um projeto dessa natureza, a coordenação dos Telecentros ainda buscava se aproximar de iniciativas mais radicais de apropriação de mídias, comunicação comunitária e criatividade. Os frutos dessa aproximação foram tantos que nem tento narrar. Posso entretanto citar um exemplo: uma parceria entre os telecentros de São Paulo e a então nascente cultura digital no Ministério da Cultura resultou na criação do esporo de MetaReciclagem na Galeria Olido - um espaço experimental importantíssimo onde fizemos muita coisa.Me pareceu importante marcar essa referência histórica em uma apresentação para a prefeitura de São Paulo. Hoje em dia, as coisas parecem muito mais dispersas. Os talentos continuam povoando a cidade, mas estão todos ocupados com suas coisas, pagando contas, construindo seus caminhos individuais. O que aquele primeiro momento fez não tinha a ver com infraestrutura, mas com visão de mundo. Imaginação. Peço até desculpas a quem costuma ler meus textos: imaginação é uma palavra que tenho repetido muito por esses dias, e deve aparecer muito por aqui nos próximos tempos. Escuto muita gente falar que a administração pública no Brasil precisa de uma cultura de planejamento, e que planejamento é "identificar problemas e encontrar soluções para eles". Com todo o respeito a quem acredita nisso, encontrar soluções para problemas isolados é estupidez. Mais importante do que listar problemas e tentar priorizá-los (porque nunca haverá recursos suficientes para resolver todos) é conseguir imaginar futuros diferentes. Como é a cidade que a gente quer? Soluções concretas só podem vir depois que imaginarmos um ponto de chegada, ou pelo menos traçarmos um itinerário atraente. São Paulo tem um potencial imenso, tanto em termos de criatividade e inovação quanto de infraestrutura e recursos, para se tornar novamente um pólo de inovação tecnológica voltada a resultados sociais. Mas é necessário experimentar, imaginar, ousar. Dar menos atenção à engenharia de sistemas do que ao design ficcional.Nesse sentido, existem poucas coisas mais equivocadas do que os projetos de cidades digitais que se veem por aí. Partem de um discurso importado sem adaptações, frequentemente o discurso publicitário da indústria de TI. Costumam se basear na imagem da cidade rica contemporânea - pós-industrial, idealista, racionalizada, com instituições estáveis, contando com espaços públicos de funções bem definidas (e claramente distinguíveis dos espaços privados), baseada na família nuclear, com uma diversidade controlada - de preferência em bairros bem delimitados, uma democracia representativa estabelecida, uma economia altamente formalizada e, principalmente, uma narrativa relativamente homogênea. Em uma cidade assim, as ferramentas digitais entrariam simplesmente para aumentar a eficiência da administração pública. No máximo para equilibrar oportunidades e aumentar a visibilidade da tomada de decisões, mas sempre com objetivos claros.Mas a maioria das cidades brasileiras não é assim. Ou nenhuma. Como comentei acima, temos cidades autoritárias e com narrativas conflitantes. São também excludentes, fragmentadas, instáveis, informais, argentárias, dinâmicas, com famílias complexas, caoticamente diversas, desrespeitosas, violentas, passionais. Nessas cidades, a visão do digital como simples aumento da eficiência não faz nenhum sentido.Para a sociedade, muito mais importante do que novas maneiras de ser controlada (câmeras, cobranças, impostos digitalizados) é apropriar-se das tecnologias de informação de maneira crítica. Que as pessoas e grupos não sejam meros usuários, mas inventores e reinventores dos propósitos dessas tecnologias. Iniciativas públicas que lidem com a desigualdade no acesso às novas tecnologias não podem se limitar a "ensinar" internet. Elas precisam "fazer" internet. É por isso que, além de escolas e centros de formação, precisamos igualmente de laboratórios. Espaços cujo objetivo não seja a inserção no mercado, mas a transformação social. Mais interessados em inovação nas pontas do que em inovação de ponta. Estamos construindo esses espaços, de maneira distribuída. Talvez seja o momento de identificá-los e contar essas histórias. Mas é importante inseri-las nas questões mais amplas de cidade. Porque tecnologia é só um detalhe do que fazemos.Todas essas questões dialogam com as movimentações que pretendo concretizar nos próximos tempos em Ubatuba. Pensar e fazer outros futuros para a cidade. Promover intercâmbio. Refletir sobre ambientes, pessoas e coisas. Em breve anuncio as próximas etapas, que já estão no forno.