Laboratórios Experimentais: interface rede-rua

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Tenho percorrido de bicicleta as ruas de Ubatuba tentando articular a visão de cidade como sistema operacional com a reflexão sobre o papel que deve exercer um Laboratório Experimental nos moldes do que propus no artigo sobre Inovação e Tecnologias Livres (parte 2). Qualquer cidade pode ser entendida como justaposição de fluxos de informação que se entrecortam, afetam-se uns aos outros e no processo criam realidades, oportunidades e também limitações. Essa visão quase óbvia sugere incontáveis formas de intervir na realidade local. Mas no momento estou procurando um foco específico para concentrar esforços. Uma imagem, um formato para inspirar e orientar. Minhas áreas de interesse continuam sendo a apropriação crítica de tecnologias, a experimentação e descoberta, o aprendizado em rede, a construção coletiva e circulação de conhecimento livre, a MetaReciclagem. É por aí que caminha esse post.

Inovação de ponta vs. inovação nas pontas

Há pouco tempo eu estava assistindo (com alguns anos de atraso) ao documentário Zeitgeist Addendum. Naturalmente, não consigo concordar com todas as teses expostas por ali. Me incomoda em particular a visão de um futuro impecável pintada por Jacque Fresco, que de certa forma coloca a tecnologia de ponta acima de todo o restante do conhecimento humano. Seu Venus Project tem uma visão algo datada de tecnoutopia, em alguns sentidos ingênua e em outros até opressora. Ele parece exigir conversão total para funcionar. Em outras palavras, demanda um contexto social em que não existe dissenso. Uma espécie de ditadura dos inventores - um futuro que eu não desejo para ninguém. Por outro lado, não posso deixar de concordar quando ele sugere que uma postura inovadora em relação às tecnologias poderia resolver uma série de problemas que consideramos inevitáveis. Um dos exemplos que ele dá são os acidentes com automóveis, um tipo de ocorrência que poderia ser amenizado se o foco do desenvolvimento tecnológico fosse a solução de problemas. Faz sentido. Mas a minha projeção de inovação aplicada para futuros melhores não é centralizada nem depende de grandes estruturas. Pelo contrário, ela está nas pontas, conversando com as ruas, presente nas gambiarras do dia a dia, naturalizada como prática cultural que alia adaptabilidade, autodidatismo e desejo de mudança. Essa visão de ação inovadora que transforma o cotidiano me parece extremamente necessária em um país repleto de desigualdades. Alta tecnologia e apropriação cotidiana. São extremos complementares do mesmo espectro. A inovação de ponta requer especialização, grandes capitais orientados à criação de mercados que sustentem todo o processo. A inovação nas pontas precisa essencialmente de generosidade, criatividade transdisciplinar e inteligência de rede. A inovação de ponta tem formatos e estruturas estabelecidos - reconhecidamente na fronteira entre mercado, universidade e ciência. A inovação nas pontas tem cada vez mais se dinamizado a partir de espaços autônomos - Laboratórios Experimentais que operam em rede promovendo a apropriação crítica de tecnologias. Que tipo de função esses Laboratórios podem assumir na sociedade atual?

Conhecimento compartilhado e o mundo lá fora

Através da internet, as redes sociais e os ambientes colaborativos online têm possibilitado a construção e circulação de conhecimento compartilhado - em especial naqueles ecossistemas informacionais que usam licenças livres como ferramenta de disseminação e replicação. Independente da licença mais adequada para cada caso, a ideia de commons (análoga ao que os espanhois estão chamando de procomún) é essencial. Tendo em vista o horizonte amplo de inovação aplicada, muito mais importantes do que música e vídeo disponibilizados online são os bancos compartilhados de conhecimentos específicos que ensinam qualquer pessoa a solucionar uma infinidade de problemas. Desde receitas de comida ou de medicina natural até dicas de afinação para instrumentos musicais. De tutoriais para criar robôs com pedaços de sucata eletrônica até guias sobre como cuidar de bebês ou construir casas que gastam menos energia. Informações sobre a história e geografia de localidades no mundo inteiro. Opiniões sobre equipamentos, serviços, organizações. Um volume imenso de informação honesta, livre, relevante e remixável. Mas esse universo em expansão não parece ter nenhuma relação direta com os dispositivos informacionais da cidade contemporânea. De fato, a vida urbana como a entendemos não tem - ainda - nenhuma conexão estruturada e intencional com o conhecimento livre disponível na internet. Voltando à metáfora da cidade como sistema: bibliotecas podem ser entendidas como estações de acesso ao mundo editorial. Agências de correios nos põem em contato com qualquer pessoa que tenha um endereço físico. As instâncias administrativas como Câmara de Vereadores e Prefeitura abrem caminho para o coração da participação política. Escolas e Universidades proporcionam o contato com conhecimento acadêmico, homogêneo e estável (com algumas notáveis exceções, que vão muito além disso). O transporte público nos move de um lugar ao outro. Podemos analisar através dos fluxos de informação também os bancos, postos de saúde, centros comunitários, escritórios de contabilidade, agências de motoboys, e por aí vai. Por sua vez, as lanhouses e telecentros oferecem de fato o acesso à internet, em toda a sua potência. Mas se tecnicamente têm tudo que alguém precisa para vivenciar aquele conhecimento comum disponibilizado nas redes, elas não têm nenhuma orientação estratégica nesse sentido. Têm as máquinas e o acesso, mas a intenção e o horizonte de atuação são amplos demais, e por consequência algo superficiais. É óbvio que existem muitos telecentros e algumas lanhouses que vão além, criam programação local voltada à autonomia, à apropriação das tecnologias em rede, ao desenvolvimento de projetos. Mas o modelo mental sobre o qual estão montados é sempre um fator de limitação: a prioridade no acesso a algo que está remoto e estabelecido.

Acesso e construção

Eu sempre acho estranho que um monte de ONGs (e escolas) brasileiras que se dizem influenciadas pelo pensamento de Paulo Freire - um crítico contundente da própria ideia de "transmissão de conhecimento" - permitam-se pensar a internet como questão de mero acesso. Para Paulo Freire, o conhecimento é criado na vivência, no momento mesmo do diálogo. Se é possível uma analogia com a internet, sua relevância não estaria no conteúdo publicado, mas na relação criada a cada instante, quando se trava contato com diferentes informações, pessoas e contextos. Aquela hora em que a gente manda uma mensagem pra um grupo de centenas de pessoas espalhadas por todas as regiões do Brasil (e alguns países estrangeiros) e curiosamente se sente em casa. O momento em que queremos aprender sobre algum assunto e encontramos pela rede uma pessoa que publicou, espontaneamente, um verdadeiro roteiro de aprendizado justamente sobre aquele tema. O conhecimento gerado no processo, na vivência, na troca, no compartilhamento. Se queremos fortalecer os aspectos transformadores das redes colaborativas e enriquecer os contextos locais com suas possibilidades, precisamos ultrapassar o paradigma do acesso. Eu e outrxs temos insistido na importância da apropriação, da experimentação e da proximidade com o cotidiano para trilhar essa estrada. É a partir dessa experiência que tenho pensado sobre Laboratórios Locais de Tecnologias Livres.

Labs como interfaces

Através da experiência Redelabs, eu tenho tido a oportunidade de saber um pouco mais sobre iniciativas do mundo inteiro que têm proposto estruturas para experimentação e criatividade distribuída. São formatos diversos, com graus variados de autonomia, atuando justamente no diálogo entre o conhecimento comum das redes e as diferentes realidades locais. Uma iniciativa pioneira de Laboratório no Brasil foi o IP://, criado em 2004 na Lapa carioca. O nome veio das iniciais de "interface pública", e essa é uma ideia que tem ressoado nas minhas andanças por aqui. Laboratórios Experimentais locais orientados para o desenvolvimento de inovação livre socialmente relevante podem funcionar justamente como interfaces entre os fluxos locais e a abundância das redes digitais. Também me vêm à cabeça dois outros projetos que têm bem clara a natureza de interface: o Medialab Prado, de Madrid e o Bailux, em Arraial d'Ajuda. É bom enfatizar aqui o que eu entendo por interface: aquilo que se coloca como ponto de comunicação entre dois campos distintos. A tradução ativa entre contextos ou áreas de conhecimento diversos. O portal entre mundos. O buraco de minhoca que possibilita saltos quânticos. O IP://, o Medialab Prado, o Bailux e tantos outros se colocam justamente nessa posição. Algumas dezenas ou mesmo centenas de projetos em todo o Brasil têm potencial para tornarem-se esse tipo de interface. Só precisam tomar algumas decisões. Preocupar-se menos com a ideia abstrata de público e de oficinas de formação, e mais com o desenvolvimento de tecnologias em si, solução de problemas. Tentar criar um ambiente acolhedor, que receba visitas não agendadas sem intimidar as pessoas. Que proporcione liberdade de ação e facilite a criação colaborativa. Que tenha um mínimo de infraestrutura (cadeiras, bancadas, tomadas, cabos de rede). Uma mistura de esporo de MetaReciclagem, Ponto de Cultura, The Hub, hacklab, centro comunitário e incubadora de startups. Podem ter programação de encontros e oficinas, complementada por um cotidiano de experimentação e desenvolvimento de projetos. E mais importante, promover a colaboração a partir da liberdade e da diversidade, e assumir seu papel de interface entre as redes digitais e as redes tecidas na vida da cidade. Projetos que se posicionam dessa forma mais ampla são o Open Design City em Berlim, o Citilab Cornellá em Barcelona (aqui tem um bom relato da Dani Matielo sobre um evento lá) e outros.  Como eu sugeri há alguns meses, esses núcleos não precisam se definir somente como "laboratórios de mídia". Não devem limitar-se à produção de "conteúdo". Tratam, na verdade, de criatividade aplicada, busca de soluções em múltiplas áreas de conhecimento. Um Laboratório Experimental pode, claro, produzir vídeos, programas de rádio, cobertura online de eventos, material gráfico, websites. Mas também desenvolve pesquisa em captação e armazenamento de energia alternativa, monitoramento ambiental com sensores, redes de aprendizado distribuído, instalações imersivas, projetos de robótica educacional. Pode trabalhar com mediação de conflitos, democracia experimental, política cultural, financiamento solidário de pequenos projetos. Elabora planos críticos para cidades digitais (ou propõe questões, pelo menos). Não existem limites para Laboratórios que se proponham a atuar como interfaces entre o mundo cotidiano e a multiplicidade das redes.  var flattr_uid = 'efeefe'; var flattr_tle = 'Laboratórios Experimentais: interface rede-rua'; var flattr_dsc = '

Tenho percorrido de bicicleta as ruas de Ubatuba tentando articular a visão de cidade como sistema operacional com a reflexão sobre o papel que deve exercer um Laboratório Experimental nos moldes do que propus no artigo sobre Inovação e Tecnologias Livres (parte 2). Qualquer cidade pode ser entendida como justaposição de fluxos de informação que se entrecortam, afetam-se uns aos outros e no processo criam realidades, oportunidades e também limitações. Essa visão quase óbvia sugere incontáveis formas de intervir na realidade local. Mas no momento estou procurando um foco específico para concentrar esforços. Uma imagem, um formato para inspirar e orientar. Minhas áreas de interesse continuam sendo a apropriação crítica de tecnologias, a experimentação e descoberta, o aprendizado em rede, a construção coletiva e circulação de conhecimento livre, a MetaReciclagem. É por aí que caminha esse post.

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