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Raquel Rennó mandou pela rede social do capeta um bom artigo no Medium com o título "Yes we can. But should we?", que levanta uma visão um pouco mais crítica pra toda a coisa da "cultura maker". Traduzindo livremente um trecho:
Parece haver uma confusão conceitual sobre o que a impressão 3D possibilita ou não. Ela nos permite encantar uma criança de quatro anos criando praticamente do nada um mini Darth Vader? Sim, permite. Mas o objeto não se materializa do nada. Uma impressora 3D consome de cinquenta a cem vezes mais energia elétrica para fazer um objeto do que o processo de injeção de plástico moldado. Além disso, as emissões de uma impressora 3D de mesa são similares a queimar um cigarro ou cozinhar em um fogão a gás ou elétrico. E o material escolhido para todas essas novas coisas que estamos clamando por fazer é esmagadoramente o plástico. De certo modo, é um deslocamento ambiental para o lado inverso, contrapondo-se a leis recentes para reduzir o uso de plástico que banem sacolas plásticas e estimulam a reformulação de embalagens. Ao mesmo tempo em que mais pessoas levam sacolas de tecido para o supermercado, o plástico se acumula em outros campos, da Techshop à Target.
De fato, a moda corrente da tal "cultura maker" exibe algumas características dignas de questionamento. Uma delas é justamente essa orientação ao "make", que cristaliza com vocabulário o hábito de "fazer" coisas, mas é usualmente interpretado simplesmente como "fabricar novas coisas". Não que a cultura maker tenha sido assim desde o início. Ainda acho que existia um romantismo nos primeiros tempos (bem capturado no Makers de Cory Doctorow), em que a ênfase vinha de fazer as coisas com as mãos, experimentar, desviar usos, aproveitar ao máximo os recursos à volta. Um espírito que por esses lados a gente aproxima da gambiarra (aqui um monte de posts e links sobre "gambiologia", que também é o nome do coletivo mineiro).
Mas daquilo que inicialmente surgia como postura crítica ao consumismo exacerbado, a assim chamada cultura maker hoje parece ter virado somente mais um produtinho na grande prateleira das ideias prontas para vender no capitalismo hiperconectado. Aí um monte de gente com seus Macbooks se junta para comprar Makerbots e ficar brincando de inventar o novo produto que vai estourar nos mercados. E no meio do caminho jogam fora um monte de plástico derretido para prototipar o melhor suporte de ipad do mundo.
Nem vou falar de novo sobre o desperdício de oportunidades quando os talentos voltam-se somente ao mercado. Já falei isso em 2011, e não vi muita coisa mudar desde então:
Hoje em dia, jovens de cidades pequenas que têm potencial precisam migrar para grandes centros em busca de oportunidades. É raro que voltem, o que leva a uma espécie de êxodo criativo. Mesmo aqueles que chegam às cidades grandes também precisam fazer uma escolha difícil: podem vender seu talento criativo ao mercado - por vezes de maneira equilibrada, mas em muitos casos limitando-se a ajudar quem tem dinheiro a ganhar mais dinheiro; ou então trocar seu futuro por capital especulativo. Podem também tentar usar suas habilidades para ajudar a sociedade - mas para isso precisam conviver com precariedade e instabilidade. Essa é uma condição insustentável para um país que tanto precisa de inovação e criatividade. Por que razão uma pessoa jovem, criativa, talentosa e consciente não encontra maneiras viáveis de usar essas qualidades para ajudar a sociedade? Alguma coisa está errada. E não me interessa que isso seja verdade no mundo inteiro. Estamos em uma época de transformações e de expectativas altas.
Mas além desse vício no mercado e no vocabulário da indústria (fabricação, protótipos, e de carona vêm junto o público-alvo, a guerrilha e todas aquelas deprimentes metáforas bélicas), essas iniciativas passam longe de qualquer preocupação com sustentabilidade. E olha que já existem construções conceituais muito interessantes no mínimo para refletir, como o cradle to cradle (que por mais inexequível que seja oferece ao menos bons argumentos para refletir sobre as finalidades dos esforços criativos). E a impressão que tenho aqui no Brasil é que se está jogando fora a gambiarra (que é nossa, tropicalizada, precária e adaptável) por uma imagem idealizada de cultura maker limpinha dos labs do primeiro mundo. Sendo que a gambiarra parece ter muito mais potência do que a linguagem dos protótipos industriais, como sugeriu o Gabriel Menotti. Aqui um trecho da minha dissertação sobre isso:
Para o pesquisador brasileiro Gabriel Menotti (MENOTTI, 2010), o protótipo é um objeto crítico de sua própria função. Em outras palavras, o protótipo só existiria enquanto etapa anterior à concretização da versão definitiva de um produto. Entretanto, à medida em que a topologia da fabricação se modifica - como parece ser o caso com a cultura maker - a utilização da ideia de protótipo induziria a um prematuro encerramento de possibilidades dos objetos, com a negação de seus diversos usos potenciais. Afirmar um objeto como protótipo implica assumir que ele tem uma existência funcional definida de antemão. Menotti sugere a necessidade de pensar outras definições para os objetos resultantes da criatividade aplicada às novas tecnologias de fabricação digital. Para ele a gambiarra, ao contrário do protótipo, caracterizaria o objeto improvisado cuja individuação é realizada pelo próprio usuário, possivelmente mais adequada a tempos pós-industriais. No limite, a perspectiva da gambiarra estimula uma maior diversidade de maneiras de apropriação e invenção, a partir da exploração de indeterminações materiais. Em outras palavras, aumentam-se as possibilidades criativas à medida em que se recusa o encerramento e delimitação das funções possíveis para determinado objeto ou conjunto de objetos. Mais do que replicar em escala local os processos industriais, é possível pensar em outras formas de relacionamento com as tecnologias digitais de confecção e transformação de objetos. Focar no conserto em vez da fabricação pode ser uma via potente de invenção e resistência.
E para continuar na viagem egocêntrica (como já fui categorizado por um mala por aí), mais um trecho da dissertação:
De fato, em uma época na qual a humanidade produz quantidades imensas e crescentes de lixo cuja proporção potencial de reciclagem pode no máximo manter-se estável, a mera sugestão de multiplicarem-se os meios de fabricação de novos objetos deveria ser profundamente questionada. A alternativa, utilizar as tecnologias de fabricação para produzirem-se peças que possibilitem a reutilização de materiais, equipamentos e objetos, não encontra tanta repercussão na mídia de tecnologia (e ainda menos, como é de se esperar, na de negócios).
Sintomaticamente, James Wallbank afirma que a impressora 3D é o mais complexo e menos útil dos equipamentos que tipicamente constituem um lab de fabricação. Em suas versões acessíveis, ela tem baixa resolução - resultando em objetos com aparência de inacabados, bruto. Os objetos produzidos raramente são recicláveis. E a geração de arquivos para produzir objetos com elas exige o domínio de mais conhecimento abstrato e softwares específicos. Ainda assim, Wallbank sugere que a impressora 3D fala ao imaginário e aos desejos de futuro de camadas maiores da população. Para ele, entretanto, a cortadora laser é um dos equipamentos com maior potencial de gerar inovação concreta, uma vez que já pode entregar produtos acabados ou semiacabados. Costuma contar o caso de um designer gráfico desempregado que frequentava o ReFab Space e projetou um modelo de caixa para o minicomputador Raspberry Pi. Com o número de encomendas recebidas, ele montou uma oficina com algumas cortadoras laser, que utiliza para fabricar as caixas. Já teria contratado três pessoas para trabalhar com ele.
No Brasil, os Fablabs ainda estão limitados em grande medida ao âmbito acadêmico. Alguns hackerspaces têm suas impressoras 3D, mas via de regra estão ali por enquanto mais como curiosidades do que instrumentos de produção. É digno de nota, por outro lado, que alguns dos equipamentos listados nas recomendações para Fablabs, como cortadoras de vinil adesivo e máquinas de bordar, estejam (há tempos) presentes em empresas de sinalização e faixas em qualquer periferia urbana, quiosques de shopping centers e afins. É possível imaginar que os laboratórios de fabricação teriam maior potencial transformador quando associados a projetos de inclusão social através do empreendedorismo - incorporando a penetração já existente dessas tecnologias, naturalizando a gambiarra como objeto inovador em si mesmo e valorizando a inventividade cotidiana. Contudo, ainda são raros os projetos que se arriscam nessa seara.
E para encerrar o festival de autocitações, uma nota de rodapé sobre as impressoras 3D:
A própria nomenclatura utilizada para denominá-la[s] indica um foco primordial em características técnicas - a impressora 3D se diferencia das impressoras de papel, que produziriam ("somente") em duas dimensões. Pode-se tentar uma interpretação alternativa, segundo a qual a impressora 3D permite "dar saída" a arquivos gerados em softwares de modelagem tridimensionais, mas isso é jogar a mesma limitação conceitual para o software. Outros nomes, como "máquinas de prototipagem rápida", como discuti acima, também carregam muito mais do que se costuma refletir - por que precisaríamos pensar que elas só se prestam a protótipos? Uma solução possível seria deixar de lado a dicotomia improdutiva entre duas ou três dimensões e chamá-las de "impressoras de coisas" ou "fabricadoras de coisas". Afinal, em um Makerspace são utilizadas lado a lado ferramentas bidimensionais e tridimensionais.
Enfim, algumas inquietações que já estavam latentes mas o artigo recomendado pela Raquel fez despertar de novo. Daqui a dois meses darei um curso sobre gambiarra e "repair culture" e pretendo retomar algumas dessas reflexões. Por enquanto, o único comentário: gambiarra vale muito mais do que a maker culture. E daqui a cinco anos, quando a moda passar, a gambiarra vai continuar necessária. Espero que não tenha sido deixada de lado pelos ventos do hype.