Cultura Digital Experimental? Parte 3 – Lista MetaReciclagem

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Terminando de editar a conversa que começou com um post em microblogs perguntando sobre “cultura digital experimental” (e já resultou nesses dois posts aqui: 1 2), e depois migrou para a lista da rede MetaReciclagem. Abaixo os melhores momentos dessa conversa na lista:

Glerm Soares começou puxando um comentário do pessoal do Marginalia Lab às questões propostas no Labtolab, evento do qual eu também participei na semana passada:

Glerm Soares, citando Marginalia Lab: (…) gostaríamos de discutir mais tanto o financiamento quanto a infraestrutura dos laboratórios, especialmente no que se refere à diferença entre as realidades Europeia e Latino-americana [Glerm: e outras políticas continentais também que tal? De onde vêm os chips mesmo?]. Gostaríamos de discutir os prós e contras em ser financiado pelo setor privado, pelo governo, um híbrido dos dois ou completamente (se é que isso existe) independente. Também gostaríamos de discutir a adequação das políticas culturais em diferentes localidades para admitir este tipo de projeto. Por último, gostaríamos de nos aprofundar no debate sobre metodologia e no desafio do enredamento – entre laboratórios e usuários e participantes deles.

Felipe Fonseca: como respondes a essas questões? o que falta?

Glerm Soares: eu acho a parte mais problemática a discussão reciclagem x indústria local.

O ponto onde o artesanal demanda toda a rede econômica de dependências pra uma tecnologia existir ali no prazo desejado. O ponto onde a reciclagem é só um maneirismo estético pra parecer mais bonito o mais difícil e sofrido, mas deixa de criar uma estratégia mais inteligente e até mais ecológica pra criar uma solução mais estável quando necessário e viável.

Felipe Fonseca: isso envolve a gente ter uma conversa em um espectro muito mais amplo do que costuma ser ver por aí. como tu sugeriu antes, “migração pra software livre” é só um pedacinho do que precisa ser feito. sustentabilidade (logística, de fornecimento, de materiais, de disponibilidade, de recursos financeiros) é ainda um horizonte distante.

acho que a reciclagem como maneirismo estético tem vantagens e desvantagens. o problema no que tu colocou é o “só“. só maneirismo estético. especificamente sobre computadores, a gente precisa trilhar um caminho que não é tão simples quanto parece – reutilizar máquinas antigas diminui o impacto imediato no meio ambiente, mas também tem um custo – equipamentos mais antigos têm menor eficiência energética, são frequentemente menos confiáveis, geram mais calor. o equilíbrio aí é uma busca eterna.

Glerm Soares: E claro as expectativas, ansiedades dos envolvidos e o ambiente necessário pra que um espaço desses consiga deixar fluir uma reflexão produtiva e todos os simulacros derivados. É preciso que uma cena independente exista sim, com perspectiva de inserção, mas crítica e autocrítica deste sistema econômico possível, para poder desafogá-lo e repensá-lo em loop. Um desejo de que isso exista independente dos labs… pra que possa haver uma experiência de raiz e de curiosidade anterior questionando legitimidades institucionais sempre…

Felipe Fonseca: acho que isso vai continuar existindo independentemente dos labs, inclusive em espaços/tempos como esse aqui onde a gente conversa agora. mas eu, particularmente nesse momento, tô buscando compor estratégias com os labs – não subordinadas a eles, mas aproveitando a chance de influenciar o jeito como as coisas são feitas.

(…) Eu estava vendo hoje a Ivana Bentes num debate na cparty levantando que se uma “estética processual” faz mesmo sentido (e a obra é o lixo do processo artístico), é necessário pensar em estratégias de financiamento do processo inteiro. financiamento de vidas, ela diz.

como se faz isso? e acho que não tem como repensar isso sem repensar o papel da ‘arte’.

Glerm Soares: Pra pegar essa coisa do termo “cultura digital experimental” que você colocou como questão no buzz está na essência sim da discussão esta consciência do papel da arte processual, da redefinição destas construções epifanizadas de sentido como um valor pra fora do resíduo documentação, documentário, objeto plástico, música, filme, algoritmo, patente.

Gostei de um comentário de alguém [Nota: Lucas Bambozzi] ali no seu twitter – ‘É preciso valorizar o erro‘.

Da minha experiência pessoal me vem imediatamente a problemática da quase centena de cacarecos que eu gero e tenho agonizando em minha gaveta inacabados pra dar na existência de um “Toscolão” ou da travada que eu dei no “Navalha” em crise de upgrade e tou paralisado pensando como chegar em uma pesquisa de inteligência artificial aplicada nele que possa ir além do academicismo ou essa e aquela linguagem de programação ou essa ou aquela estética.

Dezenas de projetos abortados, crises de consciência sobre dependência tecnológica sem solução e etc. E dá-lhe azucrinar vocês por aqui nestes momentos. :)

É preciso que o ambiente possa potencializar uma reflexão sobre esses erros, é preciso que o ambiente possa assimilar uma coisa que eu não vejo mais caminho e tenha como ter alguém próximo para apropriar-se e mutar a idéia reciclada e com um novo sentido discutido em grupo. Pra isso acredito que um modelo de residência, com bastante fluxos de pessoas curiosas e possibilidade para que as mais enagajadas consigam ser absorvidas e somadas é um caminho. Mas é preciso também um respiro pra fora dessa institucionalidade, que a meu ver seria conectando sempre mais redes externas, mantendo a chama acesa da autocrítica desse subsistema.”

Tati Prado: essa ideia do processo/estética processual na arte tá nos primórdios da construção dos conceitos de arte contemporânea. blz, o hélio oiticica já dizia isso e uma leva de artistas tb, naquela época, antes até, e hj. o que nunca ninguém conseguiu fazer, de fato, foi “abrir mão do lixo”.

Por quê? eu não sei ao certo, mas talvez o ser humano precise de alguma “materialidade” pra perceber que tá vivo.

pode ser que a contribuição da ivana pra olhar pra isso de novo, só q de outro jeito, venha desse ponto: ‘outros mecanismos de financiamento/financiamento de vidas’.

esse detalhe faz toda diferença porque está na gênese da arte a ideia de produto.

qdo os caras pintavam as paredes da caverna, não chamavam aquilo de arte. só muito tempo depois, atribuíram àquela prática esse conceito/ideia. [e aí eu nem tô falando de arte-produto no sentido mercantil apenas.]

e hj, qdo as práticas processuais “voltaram” pro foco da cena, não se sabe muito bem como lidar com isso. galera faz as coisas de forma integrada à vida cotidiana, tal como no tempo das cavernas. [sem juízo de valor sobre esta prática] daí entram as instituições pra tornar visível o produto: universidades, museus, galerias, grandes mostras e festivais, o público, etc. há um sistema que “complexifica” a vida cotidiana, confere status ao que é banal, tornando ou fazendo parecer genial uma coisa que todo mundo faz o tempo todo: criar e experimentar. (uma coisa q é supervalorizada no campo da arte e dá a impressão de “exclusividade”).

qdo a ivana usa a palavra “financiamento”, ela não nega o caráter de produto da arte. mas qdo ela diz “financiamento de vida”, talvez esteja tratando a arte e a cultura como se fossem a mesma coisa. linkando com a ideia da karla (pq essa conversa “redelabs” tá mais do q espalhada e difusa) pra mim, é como se a cultura fosse o espaço, e a arte, o lugar.

daí, a “proposta” da ivana de estender a ideia de produto pra todo o conjunto – financiar a vida – soa estranha. não se pensa a vida como produto porque ele precisa de um “contorno”… mas ninguém sabe como e qdo ela termina.

Felipe Fonseca:

mas eu não vi a fala da ivana como estendendo a ideia de produto para a arte não. acho que ela falou em “financiamento” principalmente porque as pessoas que buscam esse tipo de coisa precisam, em última instância, de recursos (espaço, equipamentos, deslocamento, casa, comida, roupa lavada e bandalarga ;) ) – e infelizmente a maneira mais fácil de obter todos esses recursos é com dinheiro. a questão que ela levanta é: como pensar em novas maneiras de levar esse dinheiro às pessoas, a partir justamente dessa crítica ao “produto” da arte. a pergunta é: como viver de arte, e como apoiar projetos e ações ligadas a isso.”

Tati Prado: é o que eu tb gostaria de saber, mas o que a experiência me mostrou até agora é que, nessa lógica produtiva – de bens e serviços, com especializações e fragmentações – em que vivemos, o artista acaba sendo um “inútil necessário” à sociedade… e os profissionais da cultura são os “dedicados incompetentes” [competência no sentido literal: fazer o que lhe compete, fazer "mais" ou "menos" não importa. mesmo se vc vende teu carro pra pagar um espetáculo, vc continua sendo incompetente pq tá fazendo aquilo que não deveria e não é da tua responsabilidade, mas é necessário, porque o cenário não te permite trabalhar de outro jeito. daí vc insiste ad aeternum... é um devotado às pessoas, às relações humanas, e vai pro céu...]

Tati Prado: talvez a minha dúvida seja anterior: existe arte sem “mecenas”?. eu não me lembro de ter visto. o que eu vejo são “mecenas” com outros nomes e roupas, dependendo do momento histórico e do cenário (numa perspectiva pública: se antes era o rei, agora é o “estado democrático de direito”; numa perspectiva privada individual: o “paitrocínio” para os mais abastados ou a escolha de outra “profissão” para os menos – ficar tocando stairway to heaven na guitarra para sempre no fim de semana; numa perspectiva coletiva independente-brasileira: muita solidariedade, doação, empenho pessoal, trabalho voluntário, mobilização e apoio de aliadxs – família, amigos, redes e parcerias pontuais convenientes)

do ponto de vista “econômico-financeiro”, a arte é uma atividade deficitária, ou seja, não produz recursos materiais suficientes “endógenos”. tá sempre precisando de agentes externos para subsidiá-la e garantir sua existência. e aí, a arte e a ciência, que têm uma raiz comum de criação e experimentação, “pedem” um fork. a “ciência” (do ponto de vista clássico, originária da física) se conecta com a indústria de larga escala, que gera recursos financeiros, e elas se retroalimentam. do ponto de vista da arte essa conexão é falha ou inexistente. do ponto de vista da cultura, há uma encruzilhada: a indústria cultural “atropelando” e massacrando as possibilidades de oxigenação da própria cultura em vez de retroalimentá-la. não que a ciência/academia não tenha problemas (vide necessidades de pesquisa aplicada e muitas parcerias duvidosas entre universidades e indústrias), só que a cultura “percebeu” há muito pouco tempo que ela tem que se virar porque não é quadrada. e aí entra toda a discussão de “economia da cultura” – as tentativas de provar e tornar visível a capacidade da cultura gerar e movimentar recursos materiais e imateriais (muitas vezes ela não tá propondo alternativas, tá só se encaixando na lógica vigente sob uma ótica local/comunitária pra sobreviver). já a “ciência tecnológico-exata” [horrível esse termo, seria um tipo de “licença didática?”), me parece trabalhar muito mais sobre a premissa da “superação” de paradigmas (teorias são substituídas a todo momento; a carruagem é substituída pelo carro, depois vem o bonde; o raio x é menos preciso que a tomografia, que por sua vez fica “atrás” da ressonância magnética), enquanto a cultura pressupõe a coexistência de perspectivas muito distintas (sociedades indígenas não são melhores nem piores, mais ou menos evoluídas, que as “digitais”, são simplesmente diferentes e precisam conviver em diálogo)

Felipe Fonseca: um pedaço da reflexão aqui é que estruturar maneiras de apoiar essas coisas “experimentais” é sim em muitos sentidos jogar dinheiro em coisas que não vão dar certo. coisas que não vão ser “produtivas” na sociedade. coisas que vão ficar no piloto, e desaparecer. a hipótese, entretanto, é que algumas, poucas, dessas coisas, podem reverter em coisas boas pra sociedade. no fim das contas, eu não tenho nenhuma certeza de que a conta vai ser positiva – por exemplo, retornando em “valor à sociedade” a quantidade de recursos que investirmos em projetos experimentais. ainda assim, acho válido tentar.

eu posso estar bitolado positivamente pelos projetos que vi apresentados aqui no medialab ontem, parte do #interactivos. ali tem umas coisas que ficam exatamente nesse meio do caminho entre arte, ciência e, sei lá, ativismo. coisas que não cabem estritamente nos sistemas estabelecidos de nenhuma das áreas. e eu acho que esse tipo de – ó de novo – experimentação é necessária por um monte de motivos.

Tati Prado: (…) como a gente desenha uma política pública federal?

(…) e nessa conversa dos “sem nome labs”, pelo que percebi, há muitas coisas pra discutir.

(…) até onde eu imagino, podem ser/são/serão espaços de convergência, intersecção, conflitos salutares, convívio estimulante, “zonas de colaboração” e um bocado de outras coisas…

Glerm Soares: tentando ajudar um pouco mais no desenho estratégico da “contrapartida” a quem interessar possa:

O resultado pra quem investe é a construção desse cenário cultural de ciênciarte (ja sem saber a diferença) aplicada de maneira poética, apaixonada, inconsequentemente tão empolgada num processo de descoberta da estetização e revelação do cotidiano, sem esquecer de toda a política que a estética tem papel de mimetizar e criticar/sublimar papeis sociais e ansiedades subjetivas e dali vem o seu valor inestimável. Isso tudo justifica inclusive nosso frequente questionamento de tentar arrumar maneira polivalente e simultânea de acessar fomento à arte, ciência, tecnologia no esforço de fazer isso responder pela economia que o movimento todo destes vértices em colisão gera e envolve; também pela construção de um cenário intelectual e reflexivo que cria um ambiente melhor pra uma vida mais interessante além da sobrevivência básica.

Não é só música – é inteligência matemática aplicada e assimilada como linguagem acessível, orgânica, harmônica. Não é só imagem – é pesquisa pra uma maneira mais eficaz de comunicação em simulacros que ainda possam surpreender. Não é só dança – é corpo em descoberta de si. Não é só improviso – é reciclagem de materiais, talentos e ambientes. Não é só festa – e a transformação do cotidiano em um carnaval de idéias. Não é só sobrevivência – é convivência…

Tati Prado: sou contra a fome (física, simbólica e espiritual), não contra o fomento. trabalho nele, por ele e com ele.

(…) escolher ser “inútil necessária” e “dedicada incompetente” significa, entre outras coisas, transitar por diversos pontos de vista e papeis em diferentes momentos, por muitas vezes simultâneos. passar a noite com os editais (se é pra mim, pro namorido, prxs amigxs que dizem não saber escrever projetos ou pras “redes” não faz diferença nenhuma pra mim. são “ócios” do ofício.) e no outro dia ir falar com a funarte, a unesco, a votorantim ou seja lá onde precise ir pra entender, discutir e batalhar pelo fomento e algo mais, requer considerar um amplo espectro de pontos de vista. eles podem ser de diversos tipos: uma visão progressista, uma compreensão limitada da ciência, a ideia de que “arte é expressão do sentimento” e cultura tira criança da rua, que artista tem o direito de criar em paz em vez de ficar preenchendo formulário… blablabla… aiaiaisocorro… valei-me nossa senhora do balé moderno… oh meu fantástico mundo de bob…