Bolsa de Cultura Digital Experimental – documentando

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Enviei há alguns dias na lista de discussão redelabs um relato sobre o desenvolvimento, no ano passado, de um edital de bolsas para pesquisa em cultura digital experimental que acabou não vingando. Segue abaixo uma versão resumida da história.

Ao fim da nossa conversa na Cinemateca durante o Fórum, cheguei a comentar que tinha ajudado a elaborar um edital de bolsas de cultura digital experimental que estava pra ser lançado pela coordenadoria de cultura digital do Minc. Era parte de um conjunto de editais que eles queriam lançar no fim do ano, que também contaria com editais para software livre, acervos digitais e alguns outros temas. No fim das contas não houve verba ou tempo para lançá-lo. De todo modo, quero contar um pouco do processo e de alguns mecanismos que a gente encontrou ali e que podem ser úteis pra outras iniciativas. É uma viagem essa coisa de dialogar com as restrições institucionais e encontrar brechas para flexibiizar as coisas aos pouquinhos… cansativo e frustrante, mas ainda assim dá uma satisfação cada pequena vitória.

Minha conversa com a coordenação de cultura digital começou por conta de um projeto de laboratórios, fruto da parceria entre Minc e RNP. Eu criticava aquela visão de que simplesmente criar estrutura garante que as coisas vão acontecer. Sugeri à coordenação de cultura digital que era interessante reunir pessoas ligadas a projetos afins, em diversos contextos institucionais. A intenção seria entender melhor as referências e expectativas envolvidas, e tecer uma rede que eventualmente ajudasse a guiar esse tipo de construção. Acabamos atropelados pela agenda burocrática e institucional. O rascunho do tal projeto de laboratórios acabou sendo desenhado em termos gerais, meses antes do nosso encontro. Fiz algumas observações sobre os labs: que não poderiam se tratar de meros telecentros estendidos, oferecendo somente banda e equipamento; que era necessário pensar em curadoria, intercâmbio e eventos; que incorporassem também possibilidades ‘digitais’ que vão além das redes de informação, com prototipagem e telepresença. Em paralelo, surgiu a oportunidade de a coordenadoria de cultura digital lançar um edital sobre o assunto. Eu já tinha começado a conversar com diversas pessoas (naquelas conversas online que publiquei no blog redelabs) e chegamos ao entendimento de que mais importante do que a figura do ‘monitor’ – que a princípio faz a mediação entre a infraestrutura e um ‘público’ externo e anônimo -, era a figura do pesquisador/artista que se utilizaria das estruturas. É uma figura que muitas vezes vive da precariedade (mendicância, como sugeriram o Novaes e a Fabib), deixando de se aprofundar em seus caminhos de pesquisa para oferecer oficinas ou empacotar ‘produtos’, ‘entregáveis’. Na sequência das conversas online e entrevistas encontramos o eixo ‘cultura digital experimental’ e decidimos que o edital dialogaria com esse recorte. Queríamos também enfatizar o caráter processual, a liberdade (inclusive para errar, como lembrou Bambozzi), e abarcar a possibilidade de infraestruturas autônomas. Daí em diante acho que foi mais de um mês desenvolvendo a minuta, negociando liberdades ponto a ponto com o que já existia em outros editais do Minc. Chegamos a algumas soluções boas. A ideia era apoiar artistas e pesquisadorxs independentes que operassem na fronteira entre arte, tecnologia, sociedade e educação. Queríamos evitar ao máximo cair em alguns vícios recorrentes de outros projetos similares, a saber a necessidade de ‘entregar produtos’, de perder tempo com relatórios formais que não seriam lidos por ninguém, ou de ministrar oficinas que, embora necessárias, muitas vezes acabavam representando um lastro que impedia voos mais altos. Já tínhamos, estrategicamente, a concordância do Minc com pontos como a descentralização, as licenças livres e o uso social de redes online. A primeira questão era em relação a espaços de trabalho. Não associaríamos cada proponente a um dos futuros laboratórios (que ainda não existem, o que foi uma vantagem), mas em vez de negar totalmente a necessidade do espaço físico (um discurso que já atribuíram a mim, equivocadamente), imaginamos trabalhar isso de maneira emergente. Cada proponente precisava estar associado sim a um laboratório, mas esse laboratório poderia ser qualquer espaço físico que tivesse a infraestrutura necessária para seu trabalho e onde pudesse apresentar o andamento do projeto. Poderia, claro, ser um laboratório institucional estabelecido, mas não haveria restrição mínima – podia ser escola, ponto de cultura, garagem de casa, espaço social ocupado. Era uma maneira de oferecer liberdade e ainda fazer um levantamento emergente de espaços relevantes. No preâmbulo do texto, falamos bastante sobre cultura digital, redes, experimentação e processo. Para dar o tom da conversa. Além de um grupo de artistas e pesquisadorxs, também seria selecionado um grupo de ‘articuladorxs culturais’. O papel dessas pessoas seria viabilizar o trabalho dxs bolsistas – criando pontes com eventos, buscando apoio e parcerias específicas, facilitando a documentação, possibilitando intercâmbios entre xs diferentes bolsistas. Me inspirei bastante no papel dos ‘mediadores culturales’ do medialab prado, que desempenham algumas dessas funções e também atuam como interface com o público visitante. Foi muito difícil encontrar o formato para essxs articuladorxs. A gente queria que fossem selecionadxs somente depois dxs bolsistas, para conseguir encontrar pessoas que tivessem relação com os assuntos tratados. Mas isso demandaria outro edital, com chances de dar aqueles descompassos de agenda que já vimos em outros casos. Acabamos fazendo um só edital para as duas modalidades. Cada bolsista receberia cerca de R$ 3600,00 por mês, durante doze meses. Não teriam verba extra para equipamentos, viagens ou afins. Como o foco era no processo, a seleção não se daria estritamente em relação ao projeto de pesquisa mas na relação entre esse projeto de pesquisa, os objetivos estratégicos do edital (ver abaixo) e o currículo dos proponentes. A ideia, mais uma vez, era enfatizar a liberdade – não queríamos ninguém preso a um projeto que podia se demonstrar irrelevante alguns meses depois. Mudanças de rumo eram previstas e estimuladas. Os objetivos do edital, segundo os quais a comissão de seleção escolheria os projetos, eram os seguintes: apropriação crítica de tecnologias digitais de informação e comunicação; exploração de imaginários e linguagens híbridas; prototipagem e fabricação digital; hardware livre; tecnologias móveis; metareciclagem; realidade aumentada; produção na fronteira entre arte, ciência e sociedade; internet das coisas; performances online distribuídas, experimentação e inovação. A comissão de seleção seria mista, com integrantes do ministério e pessoas da área (incluindo algumas das que estavam lá no nosso encontro na Cinemateca). A princípio, a gente também tinha imaginado um conselho de orientação – cada projeto teria 1 orientadorx/interlocutorx, e essas pessoas formariam um conselho que funcionaria como referência conceitual e curatorial para os bolsistas. Mas aqui travamos outra vez na dificuldade jurídica: escolher os orientadores antes dos projetos poderia ser inviável (por exemplo, se houvessem propostas com os quais nenhum orientador tivesse intimidade); escolher os orientadores depois dos projetos seria juridicamente questionável. A alternativa seria fazer totalmente separado: os bolsistas e articuladores selecionados no edital, e o conselho de curadores associado ao hipotético projeto de laboratórios. Mas, obviamente, não seria possível explicitar uma relação formal entre o edital e um projeto que não se sabe quando seria implementado (e que se fosse lido como pré-requisito empataria ainda mais a coisa toda). Ficou essa área indefinida, que num cenário positivo tinha tudo pra correr bem. A documentação também seria mais dinâmica: é inescapável que o ministério exija um relatório de início, um de percurso (seis meses) e um relatório final. Mas isso poderia ser documentado em um blog criado na plataforma culturadigital.br. Esse blog também poderia servir para a documentação cotidiana (que seria estimulada e incentivada pelos articuladores), mas não necessariamente: essa documentação processual poderia ser feita em qualquer sistema que o bolsista escolhesse (blog próprio, outros CMSs, microblog, youtube, etc.). O lance de cessão de direitos de imagem, não teve como evitar. É uma proteção que a instituição faz pra não se preocupar em ser processada por ter usado a foto dos bolsistas em um blogue ou release. É bazuca pra matar passarinho, mas daquele jeito: um passo de cada vez. — O edital, no fim das contas, ficou aguardando aprovação. O ano virou, temos uma nova ministra. Vamos ver se a equipe que entra entende a importância dessas bolsas para o desenvolvimento da cultura digital experimental no Brasil.