Por Felipe Fonseca e Hernani Dimantas
Mandamos esse texto para a publicação do Paralelo, evento que aconteceu em março/abril de 2009 em São Paulo. Devem sair uma versão impressa e uma POD (print-on-demand) nos próximos meses.
A gambiarra aparece como a arte de fazer. A re-existência do faça-você-mesmo. Sem todo o ferramental, sem os argumentos apropriados, mas com o conhecimento acumulado pelas gerações. Fazer para modificar o mundo. Um contraponto ao empreendedor selvagem. Fazer para transformar aquilo que era inútil num movimento ascendente de criatividade. A inovação está presente no DNA pós-moderno, no pós-humano. Numa vida gasosa. Abrimos aqui parênteses para fazer uma crítica ao Bauman com suas diversas modernidades líquidas. O líquido se acomoda ao recipiente. Seja um copo, um vaso ou apenas a terra contra a qual o oceano se deixa existir. O gasoso flui no espaço, no tempo e no ser em existência. Não só líquida ou gasosa, a pós-modernidade é a multiplicidade de estados que se misturam, na confluência da Ipiranga com a São João, na co-existência de todos os níveis de desenvolvimento econômico e tecnológico. Uma gambiarra que remixa, modifica, transforma e se mistura. Traço comum da inventividade cotidiana, do improviso, da descoberta espontânea, da transformação de realidades a partir da multiplicidade de usos. O mais trivial dos objetos, lotado de usos potenciais: na solução de problemas, no ornamento improvisado, na reinvenção pura e simples. O potencial de desvio e reinterpretação em cada uso. A inovação tática, acontecendo no dia a dia, em toda parte.
Gambiarra é um termo em português que no dicionário denota uma extensão elétrica, mas ali no mundo real adotou (naturalmente?) outro significado ao qual só podemos tentar aproximações: improviso, solução temporária, bricolage, desconstrução, precariedade. É tida como consequência de uma sociedade ainda não totalmente amadurecida: como não temos as estruturas apropriadas, as ferramentas adequadas, os profissionais especializados (ou o dinheiro para contratá-los), a gente improvisa. Desloca a finalidade desse e desse objeto, soluciona as coisas por algum tempo, e assim vai levando.
Mas a gambiarra é muito mais do que isso. O ideal de sociedade hiper-especializada, com conhecimento compartimentado, guardado em gavetinhas e vendido em embalagens brilhantes, já deu sinais de esgotamento. A aceleração da aceleração do crescimento econômico já começou a vacilar (e nem vamos falar em crise, ok?). O modelo de desenvolvimento do século XX não fechou a conta: os países ricos não conseguiram integrar as populações de imigrantes, criaram uma sensação de estabilidade e prosperidade totalmente ilusória, transformaram toda produção cultural e toda solução de problemas em comércio. Em nome do pleno emprego e de uma sociedade totalmente funcional, as pessoas comuns perderam uma habilidade essencial: a de identificar problemas, analisar os recursos disponíveis e com eles criar soluções. Em vez de usar a criatividade para resolver problemas, as pessoas pegam o telefone e o cartão de crédito. Todos vítimas da lógica do SAC!
Esse movimento embute a semente de sua própria reação. O faça-você-mesmo é a sequela dele. As novas gerações assumem a necessidade de ação. Não dá para ficar com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar. Há que se fazer a diferença. Mesmo nos países ricos e nos centros urbanos brasileiros, a repressão ao impulso inventivo cotidiano causa uma insatisfação que acaba sendo canalizada para atividades criativas. Inventores e inventoras em potencial buscam reconhecimento e troca em seus pares, e a gambiarra renasce. A entrada das novas tecnologias nos tem aberto alguns espaços. As pessoas estão cada vez mais construindo atalhos para a participação em rede. Grupos de afinidade se encontrando para organizar hacklabs, iniciativas faça-você-mesmo, software livre, robótica de baixo custo, hardware aberto e experimentos de diversas naturezas. Nesse sentido, a gambiarra, nosso traço tão brasileiro da gambiarra, não é atraso ou inadequação, mas sim um aviso e um apelo ao mundo: desenvolvam essa habilidade essencial, e a sensibilidade que ela exige em relação a objetos e usos. Não se alienem de sua criatividade! Não acreditem nas estruturas do mundo ocidental que querem transformar a criatividade (as "indústrias criativas" e todas as suas falácias) em nada mais que um setor da economia, restrito e regulamentado. Criatividade não se trata de submissão individual ao mercado "criativo" que tudo transforma em produto, mas do estímulo à capacidade de invenção em todas as áreas.
A gambiarra ainda não virou produto. Precisamos resistir a isso. Nosso espírito antropofágico facilita, mas as tentação de uma sociedade plenamente consumista estão sempre na esquina (ali na frente do shopping center, pra ser exato). Curiosamente, não é a precarização das pontas que faz do mundo globalizado uma ameaça para a gambiarra. O perigo é justamente o outro lado: traz o espectro de um tipo burro de desenvolvimento para os quase-desenvolvidos. Não podemos acreditar demais no sonho civilizado de uma sociedade em que toda aplicação de conhecimento vira consumo, porque isso destrói o potencial de criação nas pontas que vai ser cada vez mais importante.
Da mesma forma, é também fundamental questionar o uso de um referencial da gambiarra como mero instrumento de renovação estética, sem tratar desse aspecto importante de entender a criatividade como processo distribuído e transformador. Fica no ar a pergunta de Aracy Amaral citada em artigo de Juliana Monachesi questionando a chamada "estética da gambiarra" na mostra Rumos Artes Visuais 2005-2006 – Paradoxos Brasil: "Seria uma circunstância necessária com que os artistas brasileiros se deparam para produzir ou trabalhar com o descarte tornou-se um maneirismo?”. A gambiarra não pode ser mero ornamento formal para ocupar galerias - para desenvolver toda sua potência precisa ser legitimada, perder a aura de atraso e envolver cada vez mais gente na perspectiva de criatividade tática. Essas são as bases da Gambiologia. Não pretendemos um elogio da precariedade, do que é abaixo do ideal, daquilo que está aquém. Não, estamos atuando e construindo um mundo em que toda condição é vista como abundância. Com o espectro da invenção latente no dia a dia, qualquer problema é pequeno. Basta exercitar o olhar.