A idade contemporânea sacralizou o planejamento de produtos. Tornou o design uma via de mão única, quase divina: a indústria desenha, enquanto os "consumidores" assumem o papel de receptores semipassivos - compram, usam, descartam e compram mais. Nesse mundo, quanto menos usos um produto tem, melhor. As coisas são feitas para um fim, e só para ele. Para outras utilidades, que se comprem outros produtos. O saber popular da gambiarra é combatido, desvalorizado como ação de gente que vive na precariedade, sem acesso a recursos materiais. A consequência direta disso é que cada vez mais as pessoas aprendem que problemas só podem ser resolvidos com consumo, e perdem o acesso à inovação cotidiana. Além disso, a definição das características dos produtos, objetos e ferramentas recai totalmente sobre o lado mais forte, que também decide sozinho sobre outros aspectos como durabilidade e obsolescência, contando com o braço armado da imprensa especializada (um fenômeno bastante visível no mercado de eletrônicos, mas também com automóveis, eletrodomésticos e outros).
O desvio (como o détournement) é um tipo de contestação que atua na desconstrução simbólica de todo esse cenário. Ao contrário da reciclagem, que busca reinserir no ciclo produtivo os produtos não mais utilizados, o desvio busca trazer à tona a criatividade latente no dia a dia. A partir do momento que essa invenção cotidiana de significado se dissemina, também se dissemina o tipo mais essencial de criatividade, aquele que pode ajudar as pessoas a resolverem problemas sem pôr a mão no bolso. Não se trata de mero elogio da precariedade, mas de construção de uma habilidade cada vez mais útil em época de colapso ambiental, de crise econômica, de mesmice cultural. Para isso, precisamos não só tratar a gambiarra como solução prática, mas também como elemento estético. Quando as pessoas perdem a vergonha da gambiarra, estamos começando a virar o jogo.