Há algumas semanas a revista Época publicou uma entrevista com o Geert Lovink. Ele fala algumas coisas que fazem sentido, mas tem uma frase que não desceu redondo:
ÉPOCA – Por que o senhor critica os defensores da liberdade de cópia na rede?
Lovink – Acho que devemos fornecer meios para que a próxima geração da web ganhe dinheiro com ela, possa viver de seu trabalho e de sua criação. O problema é que o pessoal do software livre só pensa em trocar livremente seus programas. Nunca imaginaram como profissionais criativos poderão sobreviver quando nos movermos para uma economia baseada na internet.
Conversei com algumas pessoas e percebi que não fui o único que não gostou dessa frase, de alguma forma. Até faz algum sentido, mas não deixa de denotar uma falta de sensibilidade com o contexto: um comentário como esse publicado em algum ambiente onde haja familiaridade com o software livre, copyleft ou até creative commons poderia cumprir bem a função de crítica, mas numa revista como a Época (mesmo que ela não seja das piores no que se refere a tecnologias) pode ser um tiro pela culatra, matando debates antes de eles chegarem a nascer. Troquei uma idéia por email com o Geert, falando da possibilidade de coexistência de vários modelos econômicos. Falei do tecnobrega no Pará, perguntei se ele assistiu ao Good Copy Bad Copy. Ele publicou a resposta no blog dele. Traduzindo:
Eu entendo o argumento, mas vejo isso somente como uma solução de curto prazo. Depende da cultura de novas mídias, a que nós damos forma e representamos, bolar (to come up with) modelos sustentáveis a longo prazo para que provedores de conteúdo possam viver do seu conteúdo, se eles quiserem. O amadorismo deve ser uma escolha, não a opção padrão. As bandas não podem viver na estrada, e menos ainda escritores ou designers. Já é tempo de separar (unravel) as boas intenções do software livre e de código aberto das más conseqüências que o "livre" tem para produtores de conteúdo independentes e começar a imaginar, de uma forma coletiva, como fluxos alternativos de dinheiro podem ser facilitados. Voltar para as gravadoras e a indústria da mídia mainstream não é uma opção - mas o modelo do software livre e de código aberto também não.
É bom lembrar que ele foi um dos organizadores do My Creativity, um evento em Amsterdam que juntou um monte de gente e produziu uma bem fundamentada visão crítica de todo o barulho sobre "indústrias criativas". Mas eu não consigo deixar de notar duas coisas nessa linha de argumentação: a primeira é uma confusão entre o "modelo do software livre" e a mera distribuição de conteúdo; a segunda uma questão de referência e contexto.
Muitas pessoas já explicaram isso melhor do que eu, mas não custa repetir mais uma vez: a grande transformação que o software livre traz para a produção de conhecimento não é somente a livre circulação de informação compilada, mas a criação de ecossistemas complexos baseados em recursos abertos e livremente remixáveis. Mais do que só "trocar livremente os programas", eu posso ter acesso ao código-fonte de qualquer software livre, e ainda tenho a liberdade de modificá-lo e redistribuí-lo. Na minha opinião, em geral falta ousadia aos "criativos" para ir além da distribuição livre e começar a efetivamente abrir o processo criativo em rede. Ou seja, mais do que pensar em conteúdo, agitar redes criativas. Isso já acontece aqui e ali, mas ainda não existem muitos ambientes que partam dessa visão mais ampla. Lembro de ter acompanhado com interesse há alguns anos conversas na lista do estudiolivre sobre publicar faixas abertas do ardour na rede, mas até onde vi isso não andou muito (até porque o tamanho dos arquivos ainda faz isso ser um pouco impraticável). Glerm é um cara que já experimentou um pouco com a publicação de soundfonts e mais de uma vez abriu um HD inteiro na rede pra quem quisesse baixar, mas ainda assim as barreiras pra compreender e interatuar sao bastante grandes. Se me perguntarem, eu acho que ainda dá pra brincar bastante nesse sentido. Há algumas semanas instalei aqui o Celtx, um software para edição de roteiros e storyboards que me permite abrir meus arquivos na rede para colaborar com outras pessoas. Çtalker comentou comigo que o Celtx é meio careta e pode bitolar as pessoas com formatos já conhecidos de roteiro, e eu concordo, mas não deixa de ser um passo no sentido de pensar em processos criativos coletivos, como maneira de escapar à já batida imagem renascentista do criador isolado em seu estúdio/ateliê. Sei que o próprio Richard Stallman costuma enfatizar que música é diferente de software livre, mas eu gostaria de ver mais experimentação em entender a produção criativa como uma questão menos de circulação conteúdo do que como processo coletivo. Ainda sobre essa questão, é divertido ver o trecho de vídeo do Léo Germani perguntando ao Jorge Furtado se existe a possibilidade de produzir cinema como se produz software livre: ele começa dizendo que não sabe, quase refutando, mas começa a ver paralelos entre as duas atividades. A entrevista não termina, mas a pergunta continua no ar.
E aí vem a questão cultural. Eu entendo que na Europa haja toda essa expectativa de tentar entender como é que a criatividade, junto com a disseminação de tecnologias de produção criativa (também é bom lembrar que hoje em dia qualquer pessoa com um computador mediano tem virtualmente um estúdio de som ou uma ilha de edição de vídeo ao alcance das mãos), se encaixa no esquema geral das coisas. Eu entendo que se esteja tentando evitar que os criativos conectados tenham toda sua produção apropriada de maneira indesejável pelos intermediários corporativos. A imagem do youtube e do myspace terceirizando a distribuição de produção criativa mas ainda assim mantendo o grosso do lucro nas mãos dos mesmos capitalistas de sempre não deixa de me incomodar. Mas eu tenho visto (no Wizards of OS, no Picnic, no Futuresonic) a conversa sobre "como a gente vai ganhar dinheiro" falar muito mais alto do que a conversa sobre "o que a gente consegue fazer com isso tudo", e isso me incomoda. É claro que no Brasil, onde "criatividade" só dá dinheiro no mundo do jabá e na indústria da publicidade, onde nunca pareceu realmente viável viver da própria criatividade sem se vender para o mainstream e a galera já tá acostumada a viver de bicos aqui e ali, é mais fácil ignorar a questão de como se sustenta o mercado "independente". Na verdade, nem sei se consigo acreditar na existência de um "mercado independente" no Brasil. Existe o jabá, depois uma parte do mainstream que tem cara de independente, e um bando de gente que não ganha nada, e ponto. E aí vem outra questão: será que a gente vai continuar com o complexo de Daslu e tentar copiar um modelo que já não funciona na Europa, ou vamos ir mais a fundo e assumir nossa natureza um pouco mais aberta e colaborativa pra propor modelos econômicos além da oposição "distribuir de graça" x "transformar em conteúdo e cobrar pela distribuição"?