Outro conto de 99. Também tem um pouco de Rubem Fonseca. Publicado no COL 130, em 29/12/1999, e depois de novo no COL 169, em 05/06/2000. As ilustrações, novas, são da Cau.
SKOL
Será que uma pessoa é diferente de uma garrafa de cerveja? Carlos já matou várias garrafas de cerveja. Vazias. Fácil, asséptico. Puxar o gatilho, sem gritos nem sangue nem porfavornãomemataporfavor. Um mês praticando. Carlos está tão bom na pontaria que acerta uma long neck a mais de cinqüenta metros de distância, mesmo depois de já ter esvaziado algumas delas em seu próprio estômago. Mas será que com gente é tão fácil?
Planejado. Zuza vai descer do ônibus, atravessar a Protásio, ir na direção da esquina onde Carlos já o espera, fingindo que coça o saco pra mão ficar perto do cano. Quando o malandro estiver passando por aquele poste ali, a mais ou menos quatro metros, Carlos tira o berro da cintura. Aponta. Puxa o gatilho, cabeça. Zuza cai no chão. Puxa o gatilho de novo, cabeça. Pra garantir. Arma na boca de lobo, vai embora.
E se o fiadaputa não morrer? Impossível. Duas balas nos miolos. Impossível. Os porco nem vão querer saber quem foi. Ladrão morto não faz falta.
A mão esquerda de Carlos solta o bolso da calça e sobe à altura de seus olhos. Está branca, os dedos enrugados. Merda de chuva. Choveu durante toda a noite, Carlos já não tem uma parte de seu corpo seca. Escorado desde as onze horas na esquina, na parede da loja de autopeças, parece uma estátua. Só se mexeu quando a perna direita começou a ficar dormente. Uns segundinhos flexionando o joelho e voltou para a posição.
Para evitar qualquer problema, saiu de casa sem os documentos. Ele sente a chave no bolso, a corrente gelada no pescoço e o revólver na cintura. Essa arma, segundo o Seu Doca, tinha sido roubada de um coronel aposentado da Brigada. Um .32, Rossi, cano curto, preto, cabo de plástico marrom. Seis tiros. Tá bem conservado, mas dá pra saber que é meio velho porque o cão não tranca, tem que puxar o tiro inteiro, direto. Mas Carlos já se habituou, embora nunca tivesse atirado antes de começar a praticar lá no sítio do Seu Doca, em Viamão. Na verdade, Carlos ainda não atirou em seres vivos. E, além de algumas brigas de boteco, nunca machucou ninguém. Costumava ser o primeiro a sair dessas confusões, talvez por saber que seus noventa e três quilos bem distribuídos em metro e oitenta e sete poderiam ferir algum bebum, de verdade. Carlos nunca cogitaria executar uma pessoa, se não fosse pro Seu Doca, que tanto lhe ajudou desde que ficou desempregado, há dois anos. Seu Doca, precavido, não confia em outro para fazer esse trabalho. Carlos aceitou, pensando na lealdade que devia a esse velho trambiqueiro e também na garantia dele de que teria sempre comida pros filhos e pra Bia, que tava grávida de novo. Mas tinha que apagar o alcagüete, era assim que Seu Doca chamava o cara.
Surge, lá longe, mais um Passo Dornelles/Safira. Tem que ser neste. Já passaram uns quinze nessa noite, e Zuza não apareceu. Passaram também três viaturas da Brigada, uma delas parou no posto de gasolina do outro lado da rua, ficou ali por uns dez minutos, enquanto Carlos torcia para que o dedo-duro não aparecesse justamente naquela hora, que os porco tavam no bico. Mas eles se foram e Carlos continuou. Opa, agora sim. Zuza desce do ônibus e vem caminhando devagar, pouco se importando com a chuva, que continua forte. Carlos lembra-se das garrafas. Será que vai ser tão fácil assim? Será que a arma vai funcionar, depois de tanta chuva, essa merda de arma velha? Fica imaginando que terrível vai ser se ele gostar, e inventar de repetir depois.
Olha para Zuza, atravessando a Protásio e imagina um cadáver caminhando em sua direção. Amanhã esse cara não existe mais. Será que ele falou com a mãe dele hoje? Será que não tem algum filho escondido por aí, que talvez nem saiba que o pai é um ladrãozinho dedo-duro, e vai virar órfão sem ter ao menos lhe conhecido? Uma vida inteira vai fora. É só puxar um gatilho. Carlos sente-se um covarde. Arma de fogo é pra covardes. "Não vou matar o cara. Outra hora, eu acho ele, dou um couro, se ele tiver amor à vida não vai mais abrir a boca". Sua pulsação está alta, sente-se ligeiramente tonto. Está decidido, Zuza vive. O malandro se aproxima. Está passando na frente da escada da loja de materiais de construção, olha para Carlos e bota a mão no canivete dentro do bolso, sem se preocupar em esconder suas intenções.
"Esse paunocu ainda vai querer me assaltar agora". Carlos finge que coça o saco. Levanta levemente a camiseta. Zuza vê o brilho na cintura de Carlos e sai correndo. "Putamerda!" O berro faz um barulhinho quando bate na fivela do cinto, o barulhinho que tantas vezes Carlos ouviu quando treinava o saque na frente do espelho. Tiro. Erra. Carlos já corre atrás de Zuza. Tiro. Erra. O gatilho emperra antes de dar o terceiro. Merda de chuva. Zuza tropeçou na escada. É alcançado por Carlos, que já leva as duas mãos, entrelaçadas, num coice no meio das costas do dedo-duro. Ele vai ao chão, entre o terceiro e o quarto degraus da escada de mármore acinzentado. Chute no rim esquerdo. Zuza está caído, apoiado em seu braço direito, a perna direita dobrada, a esquerda estendida por cima da outra. Agora, chute no rosto, o corpo vai para trás, olhos fechados. Ali fica, parado. Dois dentes no chão, mais adiante. Ainda respira. "O viado já desmaiou!?" Carlos lembra-se da arma. Onde é que ela ficou? Olha para trás. Antes de olhar para o chão, procura alguma testemunha na avenida. Ninguém.
O pouco tempo de distração é suficiente para Zuza tirar o canivete do bolso e cravá-lo na perna direita de Carlos. A dor é imensa, seu corpo se torce inteiro para o lado, cai no chão. Zuza corre. Carlos se restabelece e vai atrás. Não o vê mais. Onde é que se escondeu o puto? Segue caminhando, não consegue correr. Passa pela parada de ônibus, pelas carrocerias destruídas na frente do ferro-velho, vê o canivete no chão, passa pela árvore e pelo contêiner de entulho. Tonteia, a dor na perna está forte. Se encosta no contêiner. Quando percebe Zuza se levantar lá de dentro, já é tarde.
Apanha com uma tábua, com pregos na ponta. Zuza bate com raiva, chega a quebrar a tábua. Carlos está deitado de frente, apoiado nos cotovelos. Suas costas em carne, muito sangue. A tábua já não serve mais como arma. Zuza pega dentro da caliça uma garrafa long neck. Skol. Carlos já sabe o que vai acontecer. Em sua mente, os próximos segundos vão demorar a passar. Aparecem cenas de sua adolescência ali mesmo, na Bonja. A primeira vez em que viu Bia, ela dezessete anos e ele dois a mais. O casamento na igreja, Bia já grávida e a mãe dela chorando - os pais dele se recusaram a vir do interior, não gostavam da menina. Por fim, Seu Doca no boteco dizendo, eu sei que tu te garante, guri.
Zuza não hesita. A garrafa estoura, furiosa, na parte de trás da cabeça de Carlos, rasgando-lhe a pele e jogando seu rosto ao chão áspero. Seus pulmões ainda vão puxar ar por um minuto ou dois. Ninguém aparece para ajudar. Será que uma pessoa é diferente de uma garrafa de cerveja?
---Izq