Tecnologia social

Uma versão reduzida desse artigo foi publicada no caderno Mais, da Folha de São Paulo, em 19/04/2004

Os cadernos de informática e demais viciados em novidades costumam encontrar a cada meio ano a grande revolução que vai mudar os rumos da humanidade. A bola da vez parecem ser as chamadas social networks (redes sociais), como Orkut, Friendster, ICQ Universe, Flickr e afins. Trata-se de ambientes que mapeiam a rede de relacionamentos das pessoas e permitem a organização de grupos com interesses compartilhados, debates sobre esses interesses, e alguns outros meios de interação. Nenhuma dessas características é novidade para quem já se utiliza da internet para interagir com outras pessoas e conhece as listas de discussão, weblogs, comentários e publicações coletivas. Talvez a inovação do chamado software social esteja na interface integrada de todos esses recursos, e no Foaf (friend of a friend), um padrão de metainformação que surgiu paralelamente a esses sistemas. Particularmente, eu considero o software social mais um passo na evolução do que pode ser chamado de maneira abrangente como tecnologia social, um conceito que vai muito além de dispositivos conectados a redes telemáticas.

Ouvi falar pela primeira vez em tecnologia social da boca de Bráulio Brito, amigo e professor de semiótica mineiro, no meio de uma das crises de identidade do que costumava ser conhecido como Projeto Metá:Fora. É possível que o uso que eu faço da expressão seja diverso do aceito nos círculos acadêmicos. Se esse é o caso, não peço desculpas, apenas alego que, não sendo um profissional das palavras, não me incomodo em ocasionalmente agir como um pirata: roubo idéias, abuso delas a meu belprazer e depois as abandono. O fato é que tenho observado alguns padrões emergentes, em diferentes áreas do conhecimento, o que acaba anulando um pouco o meu fetiche por informática quando um novo sistema surge.

Antes de criticar o maravilhoso mundo da tecnologia da informação, esse apregoado elixir que trará a redenção de todos os povos em uma grande inteligência coletiva e democrática da era de aquário, devo declarar que sou um usuário assíduo da comunicação telemática. Brinco com a internet desde 1996, quando usava os terminais de fósforo verde através do Vortex, no CPD do Campus Saúde da UFRGS (Universidade Federal do RS); estive envolvido com dezenas de projetos relacionados a tecnologia da informação; recebo quase três mil emails mensais, sem contar com spam e surtos viróticos. Não obstante, sinto até raiva quando vejo iniciativas interessantes serem empacotadas e transformadas em produtos conceituais proto-revolucionários, com significado e resultados limitados, tomados sem que se observe todo o contexto.

Quero começar discordando do uso comum de termos como "comunicação digital" e "comunidades virtuais". Em um pequeno mas eloquente livro chamado "Cérebros e Computadores", Robinson Moreira Tenório trata de desmistificar o jargão adotado por um certo senso comum no mercado e na mídia, de que computadores significam informação digital, e o "velho mundo" neoludita - as pessoas "desconectadas", defasadas - são exemplo de um comportamento "analógico". Ora, não sendo um daqueles pilotos de naves em Matrix que lêem código binário, o uso que eu faço de um computador é profundamente analógico. Mover o ícone de um arquivo para a lixeira são os exemplos mais triviais. Por outro lado, há a questão do virtual. Há quase dois anos, eu e Hernani Dimantas criamos uma lista de discussão que veio a ser o Projeto Metá:Fora, que até hoje tenho dificuldade em definir: um conceito de produção colaborativa, um grupo de cento e cinquenta lusófonos espalhados pelo mundo criando projetos baseados no conhecimento livre, uma série de subprojetos abertos. Me entorta o estômago quando alguém define o Projeto Metá:Fora como uma comunidade virtual. Como assim, virtual? Está certo, usávamos meios de comunicação que contam com um alto grau de virtualização para debater novas idéias e mobilizar pessoas interessadas em agir com interesses comuns. Mas o sentido de comunidade era atual, real. Interagíamos pela internet, mas também usando papel e conversando em um bar.

Outra coisa que me aborrece são aquelas pessoas que, quando ouvem falar sobre tecnologia, pensam logo em computadores e assemelhados. O computador é um aparelho desagradável. Abstraídas as exceções, é composto por duas caixas beges feias, desajeitadas, que contribuem para o aquecimento da atmosfera, emitem radiação e um ruído irritante. Se isso é o supra-sumo da tecnologia, eu serei o primeiro a reclamar. Mas tecnologia para mim não se define nem encerra em computadores. Pelos padrões acadêmicos, sei que posso incorrer em mais um erro conceitual (não, eu não li tudo o que deveria sobre o assunto - evitem esse tipo de crítica), mas chamo de tecnologia qualquer artifício que modifique a natureza com uma intenção específica, e de tecnologia social qualquer desses artifícios que tenha por objetivo aproximar pessoas com interesses em comum e articular meios para que possam promover a ação em busca desses interesses. Nesse sentido, a tecnologia social abrange desde um caderno até um telefone celular. Sim, computadores podem fazer parte da equação, mas convém que se evite equiparar uma coisa à outra. Computadores podem ser o meio para a tecnologia social, mas essencialmente ela trata mais de uma maneira de usar as ferramentas de comunicação, e isso envolve auto-organização, colaboração e cooperação, construção e validação coletivas de conhecimento, quebra de hierarquias, descentralização e o caráter emergente das tomadas de decisão.

É possível pensar em diversos exemplos práticos que trabalham a questão da tecnologia social em vários aspectos além da questão da informática. Há os casos benéficos e há os destrutivos. Vou ficar com os primeiros:

* Mídia alternativa. É claro que a proliferação de weblogs e publicações coletivas e abertas tem seu significado. Mas vale a pena dar uma olhada nas rádios comunitárias - aquelas comunitárias mesmo, não valem as que tentam emular o ambiente e a programação de uma rádio comercial -; nos jornais de associações de bairro e pequenas entidades que não têm orçamento suficiente para formalizarem-se como ONGs; nos fanzines que acompanham as cenas culturais independentes.

Aliás, falando sobre mídia, acabei me envolvendo nos últimos anos com todo um contexto que é definido como mídia tática, que eu entendo como a reapropriação, por parte da sociedade, das ferramentas de comunicação. Há grandes exemplos por todo o mundo de movimentos sociais que utilizam as armas informacionais comuns ao mercado para denunciar os pecados do "inimigo"- seja ele uma empresa que pesquisa transgênicos, uma fabricante de sapatos que se serve de trabalho semi-escravo na Ásia ou a Organização Mundial do Comércio. Acontece que a cultura brasileira, pelo menos aquela que tenho visto por aí, tem uma natureza muito mais conversatória do que falastrona. Quero dizer com isso que tenho encontrado pessoas que vêem muito menos naturalidade em ser ouvidas do que em interagir: simultaneamente ouvir e falar. Seja isso medo de ser mal interpretados ou parte da formação cultural de um povo que criou entre outras coisas a Umbanda, uma das crenças mais descentralizadas e abrangentes de todo o mundo, o que interessa é que nós que pretendemos trabalhar na transformação social com o apoio da tecnologia de informação devemos estar cientes desse fato se queremos algum tipo de resultado.

* Comunicação em rede. Sim, estou falando da internet e suas fantásticas ferramentas de mobilização coletiva, aqui incluídas as redes sociais já mencionadas, mas também me fascina velocidade com que os camelôs descobrem que a fiscalização está na rua, ou dos apitos no Posto 9 avisando que a polícia tá na área.

* Colaboração. Sim, o software livre é um case maravilhoso. Mas o maravilhamento gringo frente à complexidade operacional de uma escola de samba ou, como apontou André Passamani, o mutirão para a construção do puxadinho - mais água no feijão, pagode e generosidade - podem ser exemplos ainda mais representativos.

A tecnologia social é, ninguém poderia negar, uma área extremamente abrangente. Eu tenho dedicado meu tempo a projetos que seguem uma série de princípios:
- Ênfase no que Hernani Dimantas chama de conversações, inspirado pelas conversations do manifesto cluetrain: mais do que simples expressão plural, a agregação de vozes em diferentes áreas do conhecimento em torno de objetivos em comum.
- Uma orientação emergente no que eu e Daniel Pádua definimos como Xemelê: a preocupação de que todos os envolvidos em determinada conversação mantenham uma linguagem acessível àqueles que não são de sua áreas, evitando jargão demasiado específico.
- Copyleft. O copyleft e os avanços conceituação e aceitação da ideia de conhecimento livre não é ingenuidade, é simples aceitação do fato de que o conhecimento é sempre misto de construção pessoal e coletiva, e que tanto a impossibilidade da propriedade intelectual quanto a anulação do papel individual em uma hipótese totalmente aberta são extremos que não nos interessam.

Em suma, as redes sociais são, sim, interessantes. Vale a pena participar. Eu tenho retomado o contato com pessoas que não via há muito tempo, tenho encontrado opiniões interessantes sobre assuntos que me dizem respeito e venho também tendo a oportunidade de conhecer novas pessoas baseado nas afinidades que se tem a oportunidade de expor em tais sistemas. Mas que não se esqueça que este é só mais um passo de um longo processo.

Hipertexto:
- Orkut: http://www.orkut.com
- Friendster: http://www.friendster.com
- ICQ Universe: http://universe.icq.com
- Flickr: http://www.flickr.com
- Foaf: http://www.foaf-project.org/
- Hernani Dimantas: http://www.marketinghacker.com.br
- Howard Rheingold: http://www.smartmobs.com
- André Passamani: http://colab.info
- Manifesto Cluetrain: http://www.cluetrain.com
- Daniel Pádua: http://www.dpadua.org
- Copyleft e conhecimento livre: ver http://www.creativecommons.org