A Daslu e o Camelódromo

Esse artigo foi publicado na revista A Rede, em novembro de 2005.


Nos últimos anos, o Brasil se tornou referência mundial em iniciativas que usam o software livre para combater a exclusão digital. O modelo de telecentro foi adotado em esferas governamentais e do terceiro setor, e milhões de pessoas tiveram a oportunidade de usar as tecnologias da informação e comunicação (TIC). Mas para quê? Muitos projetos de inclusão digital tratam todo o universo de possibilidades sociais das TIC como mera questão de estar dentro ou fora. Podemos estar nos esquivando da parte mais interessante do debate: entender de que forma essas tecnologias podem ser adaptadas para melhorar a vida das pessoas.

Um caminho é a perspectiva de apropriação tecnológica. Enquanto as pessoas não tiverem consciência de que podem elas mesmas manipular a tecnologia, a transformação proporcionada por essas iniciativas terá alcance limitado. Muitos telecentros funcionam como cibercafés gratuitos: ainda existe a distância entre o pessoal "de dentro" e o "público". A preocupação é que as comunidades tenham acesso à internet. Mas pouco se fala que as pessoas não precisam ser apenas usuárias, e que podem ser co-autores. Se o que buscamos é transformação sustentável, gerar autonomia é fundamental. Aprender a preencher um currículo em um editor do texto não traz vantagem a longo prazo para ninguém. Além disso, é triste ver pessoas que aprendem a digitar, mas não têm nenhuma familiaridade com o ato de escrever. Sabem usar o software, até que digitam rápido, mas nada do que escrevem tem alma. Instigaram seu desejo de fazer parte do seleto clube dos usuários de computadores, mas não o seu desejo de expressão e de criação.

Muitos coordenadores de projetos esquecem que a comunicabilidade é um traço marcante da cultura brasileira, com o papo de bar, a fofoca e a mania de dar pitaco. Aliás, mesmo dentro dos telecentros, o papo de boteco continua: os brasileiros criaram fama ao usar serviços como o blogger, o fotolog ou o orkut. E eu já ouvi coordenadores de projeto perguntando se havia como bloquear o acesso a esses sites. Querem que as pessoas usem a tecnologia para se comunicar, mas proibir o que elas fazem de melhor? Ah, certo: um usuário correto deve acessar um portal de notícias para ver o resultado do jogo ou o que vai acontecer na novela, e depois preencher seu currículo. Um camelô que tem acesso ao maravilhoso mundo da internet vai deixar de ser camelô e virar office-boy, como deve fazer um incluído, certo?

Errado! Por que não pensar em como a tecnologia pode melhorar a vida do camelô? Por que todo mundo precisa querer ser uma Daslu, catedral, modelo excludente e baseado em pura competição? Por que esse pessoal tem tanta vergonha do camelódromo da esquina, ao qual todo mundo vai? Aliás, a metáfora de Eric Raymond, que opõe a catedral aos bazares para demonstrar o software livre, pode muito bem ser tropicalizada como "a Daslu e o camelódromo". A primeira é baseada na centralização do poder, na competição e na inatingibilidade. O bazar vira camelódromo, dinâmico, orgânico, vivo e participativo. Como aproveitar as características culturais brasileiras para obter o máximo das tecnologias? O primeiro passo é buscar processos voltados às dinâmicas de mutirão, que existem em qualquer canto, do puxadinho à escola de samba. Uma proposta seria trocar todos os cursos de editor de texto por oficinas de weblogs. E estimular as pessoas a usarem a internet para promover a troca de conhecimentos, ações colaborativas e a mobilização coletiva.