Postura Experimental

Insisto há algum tempo que, em se tratando de labs experimentais, hoje em dia mais importante do que a infraestrutura é uma certa postura experimental (e sei que mais gente também pensa assim). Por um lado, é óbvio que essa afirmação sugere a crescente irrelevância de tantos projetos de laboratórios que dedicam (muito) mais atenção a computadores, câmeras e afins do que a criar dinâmicas para reunir pessoas e promover entre elas o intercâmbio e a construção coletiva. Por outro lado, reafirma a inventividade presente em arranjos temporários e auto-organizados, frequentemente informais e baseados na troca generosa e abundante. Mas como fazer para escapar às amarras do fazer cotidiano e da inserção em esquemas predefinidos, nos quais as pessoas já sabem como se portar? Como evitar que o momento do encontro seja somente um espaço de performance de rotinas individualmente ensaiadas e permita a troca real de influências mútuas?

Uma das atividades mais concorridas do Labx que organizei no Rio em dezembro passado foi a mesa sobre Labs Nômades, que reuniu iniciativas vindas de diversos contextos institucionais e localidades. Grande parte delas atua de maneira diversa do que geralmente se espera de "laboratórios de mídia": ocupam o espaço público, firmam parcerias com organizações locais, fazem reuniões em cafés ou botecos, desenvolvem estruturas móveis, organizam-se de maneira improvável e depois desaparecem. Em comum têm a pulsão da criação, frequentemente superando - ainda que temporariamente - a precariedade, adaptando-se a quaisquer condições que se apresentem. Geralmente, produzem muito mais do que projetos institucionais com recursos muito mais vultosos. Parte de sua força vem da inventividade de formatos de agrupamento.

Labs em movimento

Aqui no meu canto, de onde observo essas coisas emergirem, espero que os labs contemporâneos (que vão ativar o pós-digital?) tenham entre seus objetivos gerar soluções para um mundo melhor. De preferência com base em tecnologias livres e dialogando com grandes estruturas que já existem, incluindo os programas de inclusão digital de grande escala, que ainda acredito terem um grande potencial de reinvenção. Nesse particular, repito outra vez o que falei mês passado na Virada Digital em Paraty: cada sala de informática em escola, telecentro, ponto de cultura ou similar tem o potencial de se tornar um criativo laboratório experimental. Basta uma sutil mas importante inversão de expectativas: em vez de afirmar um uso específico das tecnologias, esses espaços deveriam concentrar-se em elaborar questões abertas sobre elas. Passar do ponto final à interrogação. Partir do pressuposto de que qualquer processo de formação orientado à exposição, avaliação e controle já começa defasado.

A palestra em Paraty, aliás, foi importante - apesar de um pouco conturbada. Até uma semana antes do evento, eu estava agendado para falar às 14hs do sábado. Poucos dias antes, me remarcaram para as nove da manhã. Cheguei a comentar com a produção que é otimismo demasiado esperar que haja público tão cedo em um sábado, ainda mais em Paraty. Mas madruguei em Ubatuba para chegar a tempo. No horário marcado, disseram que teriam que adiar para às 13hs. Foi bom porque tive mais tempo para preparar a apresentação, além de ter encontrado um monte de amigos pelas ruas do centro histórico. Uma apresentação um tanto bizarra de artes marciais que ocupava o palco me atrasou mais um pouco, e ironicamente iniciei quase no horário originalmente previsto.

Apesar de muita semelhança com a estrutura das Campus Parties, havia ainda outra vantagem na Virada: as pessoas ouviam o que se falava ao microfone. Rolou até alguma interação ao final da minha fala. Mais tarde, fora do palco, fui também apresentado a Álvaro, coordenador do curso de informática da Etec (Escola Técnica - Centro Paula Souza) de Ubatuba. Esse encontro foi providencial: duas semanas depois aconteceria o Encontrão Hipertropical de MetaReciclagem naquela cidade. A partir desse contato, articulamos algumas atividades em parceria durante o Encontrão, que acabou se tornando um grande laboratório aberto - informal e dinâmico, seguindo os desejos e intenções das pessoas por ali e desapegado de cumprir obrigações formais comuns em eventos do tipo. Contei mais sobre o Encontrão no blog Ubalab, mas destaco aqui um trecho:

"Parte do grupo foi ao centro comprar vegetais e peixes para o almoço (atividade coletiva que tomou boa parte da tarde). Outrxs montaram em um dos quiosques da Fundação um laboratório onde se dedicaram a montar antenas para tentar escutar navios ou interferências em satélites, um radiotelescópio feito com uma daquelas mesas de plástico de boteco, experiências com redes sem fio, uma oficina aberta sobre Openstreetmap e outras experiências espontâneas. Um grupo de alunos da Etec chegou em uma van, instigados para continuar o ritmo da tarde anterior.

A página com a programação do Encontrão foi, como alguns de nós já esperávamos, mais uma declaração de intenções do que um mapa de atividades e horários. As conversas que tinham sido planejadas para os dois dias foram condensadas em um momento à noitinha, puxadas por Henrique Parra. Iluminado por uma verdadeira gambiarra (no sentido português) e por um datashow apontado ao chão, um círculo de gente fez uma conversa aberta sobre temas diversos: Ubatuba, juventude, cenário político local, mata atlântica, redes autônomas, sonhos, desejos e projeções. Fiquei feliz quando os alunos da Etec se colocaram (principalmente a menina que falou indignada que 'a juventude de hoje só quer saber de jogar CS e ver tirinha no facebook').

Na manhã de domingo, alguns alugaram bicicletas e dizem ter rodado 36km pela cidade, coletando trilhas de GPS que vão alimentar o mapa da cidade no OSM. O coletivo Mutgamb fez uma reunião de trabalho, enquanto outros grupos se espalhavam pelas praias e bairros da cidade."

No que toca à reflexão sobre Labs, o Encontrão de MetaReciclagem me deu ainda mais certeza de que podemos produzir muito mais nesse limite do caos do que se tivéssemos uma programação rígida. É claro que muita gente ficou decepcionada porque esperava um encontro mais organizado. É certo que, se tivéssemos demandas bem definidas a solucionar, um encontro nesse formato talvez não fosse a melhor solução. Mas o caso ali era outro: explorar possibilidades, proporcionar encontros, afirmar a identidade múltipla de uma rede. Conceber futuros coletivos e abertos. Menos concretizar ações específicas do que deixar as possibilidades fluírem para imaginar o que vamos querer fazer em seguida. Sob essa ótica, acredito que o Encontrão foi um sucesso. E imagino que exista aí uma lição para os Labs: além de postura ser mais importante do que infraestrutura, existem momentos em que o ritmo complexo da livre interação entre pessoas proporciona maior abertura do que um planejamento detalhado e rígido.
 

Este artigo foi escrito com o apoio do Centro Cultural da Espanha em São Paulo.

Insisto há algum tempo que, em se tratando de labs experimentais, hoje em dia mais importante do que a infraestrutura é uma certa postura experimental (e sei que mais gente também pensa assim). Por um lado, é óbvio que essa afirmação sugere a crescente irrelevância de tantos projetos de laboratórios que dedicam (muito) mais atenção a computadores, câmeras e afins do que a criar dinâmicas para reunir pessoas e promover entre elas o intercâmbio e a construção coletiva. Por outro lado, reafirma a inventividade presente em arranjos temporários e auto-organizados, frequentemente informais e baseados na troca generosa e abundante. Mas como fazer para escapar às amarras do fazer cotidiano e da inserção em esquemas predefinidos, nos quais as pessoas já sabem como se portar? Como evitar que o momento do encontro seja somente um espaço de performance de rotinas individualmente ensaiadas e permita a troca real de influências mútuas?Uma das atividades mais concorridas do Labx que organizei no Rio em dezembro passado foi a mesa sobre Labs Nômades, que reuniu iniciativas vindas de diversos contextos institucionais e localidades. Grande parte delas atua de maneira diversa do que geralmente se espera de "laboratórios de mídia": ocupam o espaço público, firmam parcerias com organizações locais, fazem reuniões em cafés ou botecos, desenvolvem estruturas móveis, organizam-se de maneira improvável e depois desaparecem. Em comum têm a pulsão da criação, frequentemente superando - ainda que temporariamente - a precariedade, adaptando-se a quaisquer condições que se apresentem. Geralmente, produzem muito mais do que projetos institucionais com recursos muito mais vultosos. Parte de sua força vem da inventividade de formatos de agrupamento. Labs em movimentoAqui no meu canto, de onde observo essas coisas emergirem, espero que os labs contemporâneos (que vão ativar o pós-digital?) tenham entre seus objetivos gerar soluções para um mundo melhor. De preferência com base em tecnologias livres e dialogando com grandes estruturas que já existem, incluindo os programas de inclusão digital de grande escala, que ainda acredito terem um grande potencial de reinvenção. Nesse particular, repito outra vez o que falei mês passado na Virada Digital em Paraty: cada sala de informática em escola, telecentro, ponto de cultura ou similar tem o potencial de se tornar um criativo laboratório experimental. Basta uma sutil mas importante inversão de expectativas: em vez de afirmar um uso específico das tecnologias, esses espaços deveriam concentrar-se em elaborar questões abertas sobre elas. Passar do ponto final à interrogação. Partir do pressuposto de que qualquer processo de formação orientado à exposição, avaliação e controle já começa defasado.A palestra em Paraty, aliás, foi importante - apesar de um pouco conturbada. Até uma semana antes do evento, eu estava agendado para falar às 14hs do sábado. Poucos dias antes, me remarcaram para as nove da manhã. Cheguei a comentar com a produção que é otimismo demasiado esperar que haja público tão cedo em um sábado, ainda mais em Paraty. Mas madruguei em Ubatuba para chegar a tempo. No horário marcado, disseram que teriam que adiar para às 13hs. Foi bom porque tive mais tempo para preparar a apresentação, além de ter encontrado um monte de amigos pelas ruas do centro histórico. Uma apresentação um tanto bizarra de artes marciais que ocupava o palco me atrasou mais um pouco, e ironicamente iniciei quase no horário originalmente previsto.Apesar de muita semelhança com a estrutura das Campus Parties, havia ainda outra vantagem na Virada: as pessoas ouviam o que se falava ao microfone. Rolou até alguma interação ao final da minha fala. Mais tarde, fora do palco, fui também apresentado a Álvaro, coordenador do curso de informática da Etec (Escola Técnica - Centro Paula Souza) de Ubatuba. Esse encontro foi providencial: duas semanas depois aconteceria o Encontrão Hipertropical de MetaReciclagem naquela cidade. A partir desse contato, articulamos algumas atividades em parceria durante o Encontrão, que acabou se tornando um grande laboratório aberto - informal e dinâmico, seguindo os desejos e intenções das pessoas por ali e desapegado de cumprir obrigações formais comuns em eventos do tipo. Contei mais sobre o Encontrão no blog Ubalab, mas destaco aqui um trecho: "Parte do grupo foi ao centro comprar vegetais e peixes para o almoço (atividade coletiva que tomou boa parte da tarde). Outrxs montaram em um dos quiosques da Fundação um laboratório onde se dedicaram a montar antenas para tentar escutar navios ou interferências em satélites, um radiotelescópio feito com uma daquelas mesas de plástico de boteco, experiências com redes sem fio, uma oficina aberta sobre Openstreetmap e outras experiências espontâneas. Um grupo de alunos da Etec chegou em uma van, instigados para continuar o ritmo da tarde anterior. A página com a programação do Encontrão foi, como alguns de nós já esperávamos, mais uma declaração de intenções do que um mapa de atividades e horários. As conversas que tinham sido planejadas para os dois dias foram condensadas em um momento à noitinha, puxadas por Henrique Parra. Iluminado por uma verdadeira gambiarra (no sentido português) e por um datashow apontado ao chão, um círculo de gente fez uma conversa aberta sobre temas diversos: Ubatuba, juventude, cenário político local, mata atlântica, redes autônomas, sonhos, desejos e projeções. Fiquei feliz quando os alunos da Etec se colocaram (principalmente a menina que falou indignada que 'a juventude de hoje só quer saber de jogar CS e ver tirinha no facebook'). Na manhã de domingo, alguns alugaram bicicletas e dizem ter rodado 36km pela cidade, coletando trilhas de GPS que vão alimentar o mapa da cidade no OSM. O coletivo Mutgamb fez uma reunião de trabalho, enquanto outros grupos se espalhavam pelas praias e bairros da cidade."No que toca à reflexão sobre Labs, o Encontrão de MetaReciclagem me deu ainda mais certeza de que podemos produzir muito mais nesse limite do caos do que se tivéssemos uma programação rígida. É claro que muita gente ficou decepcionada porque esperava um encontro mais organizado. É certo que, se tivéssemos demandas bem definidas a solucionar, um encontro nesse formato talvez não fosse a melhor solução. Mas o caso ali era outro: explorar possibilidades, proporcionar encontros, afirmar a identidade múltipla de uma rede. Conceber futuros coletivos e abertos. Menos concretizar ações específicas do que deixar as possibilidades fluírem para imaginar o que vamos querer fazer em seguida. Sob essa ótica, acredito que o Encontrão foi um sucesso. E imagino que exista aí uma lição para os Labs: além de postura ser mais importante do que infraestrutura, existem momentos em que o ritmo complexo da livre interação entre pessoas proporciona maior abertura do que um planejamento detalhado e rígido.  Este artigo foi escrito com o apoio do Centro Cultural da Espanha em São Paulo. -->

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