Meu relato resumido sobre os dias no Pará, em agosto. Artigo também publicado no site Hipermedula*. Estou costurando uma versão mais detalhada para o blog Ubalab, mas ainda demora um pouco.
Em agosto tive a oportunidade de participar da etapa paraense(1) do Networked
Hacklab (2) – um encontro que reuniu ativistas, artistas, hackers, pesquisadores e afins,
com o objetivo de propor uma cartografia crítica da Amazônia. O evento foi organizado
por Giseli Vasconcelos (3), em um formato dinâmico e produtivo. Foram duas
“imersivas hacklab”, no começo e ao fim de agosto. Estive na primeira. Cada imersiva
estava por sua vez subdividida em dois momentos, desenvolvidos em diferentes
localidades: primeiro em Belém, e depois em Santarém.
O Networked Hacklab pôs em contato coletivos locais do Pará com um grupo de
“estrangeiros”. Na primeira etapa, esse grupo de fora era composto por Tati Wells (4), o
espanhol Pablo de Soto (5), Paulo Tavares (6) e eu. O objetivo na quela fase era trazer elementos mais conceituais, falando sobre ferramentas e metodologias de mapeamento.
Pela programação, a segunda etapa (com os não-locais Bruno Tarin (7), Bruno Vianna (8)
e os colombianos da Antena Mutante (9) seria mais focada em produção audiovisual.
Os grupos locais em Belém eram vários: Qualquer Coletivo, Reconstruções, Coisa
deNegro, RedeCom, Guerrilhas Estéticas, Paracine e outros. Ricardo Folhes, pesquisador paulista que vive em Santarém, também estava por lá. Já em Santarém, foi uma articulação via Coletivo Puraqué (10) com lideranças comunitárias, ativistas, projetos como a Casa Brasil de Santarém e o Pontão de Cultura dos Tapajós. Na mediação entre os diversos grupos estaria ma própria Giseli, além de Arthur Leandro (11) e Bruna Suelen (12).
Belém é uma cidade grande, autodenominada “metrópole amazônica“. Tem uma
cena cultural efervescente, tradição artística considerável e enfrenta contradições co-muns a toda cidade grande brasileira: diferença social acentuada, especulação imobiliária,
expansão urbana desordenada, trânsito lento em decorrência da ênfase no
transporte individual. Tem séculos de uma história que a gente não estuda muito
aqui ao sul de Salvador – falha que os dias passados ao lado de Arthur Leandro acabam
por diminuir. Belém foi a sede do Estado do Grão-Pará e Maranhão (13), que em meados
do século XVIII formava uma colônia separada do Brasil. O Grão-Pará só aderiu
ao Brasil após a “independência” em 1822, e na década seguinte foi palco para a Cabanagem(14) - insurgência de negros, índios e caboclos que contou com algum apoio
nas classes altas e médias descontentes com o governo central no Rio de Janeiro. Os
cabanos controlaram a cidade por quase um ano, caso raro na época. Ainda hoje, a
região portuária representa papel fundamental na cultura de Belém – elo de conexão
por um lado com o interior da Amazônia e por outro lado com o restante domundo.
No primeiro dia, nossa base foi o Casarão Cultural Floresta Sonora (15) – um espaço
no centro de Belém, ligado à rede Fora do Eixo (16). A abertura do encontro foi na sede
do IAP, Instituto de Artes do Pará – um enclave ou armadilha, cercado por uma igreja
e umprédio do exército brasileiro. Carlinhos Vas comandava o somaberto a canjas e
interferências. O pessoal comandou uma dinâmica para nos apresentarmos uns aos
outros, empares.
No dia seguinte, migramos para o Parque dos Igarapés (17), onde ficaríamos imersos
(às vezes em sentido literal, dentro do igarapé) por três dias. O Parque fica relativamente
longe do centro e não oferece acesso à internet, o que reforçou o caráter de
contato entre pessoas daqueles dias. Foram dezenas de apresentações, debates, experimentações e conversas, sobre projetos e ações em áreas diversas: intervenção
urbana,mapeamento, ativismomidiático, direitos humanos, tecnologia, design, produção
audiovisual e musical, tecnologia, políticas públicas, e por aí vai.
Ficou a sensação de que aos poucos se desfaziam ali um monte de barreiras que
a mim eram invisíveis. Ouvi mais de uma vez que os grupos locais que estavam presentes
não costumamconversar tanto uns comos outros. Isso emsi já é um resultado
positivo do encontro. Houve também oficinas espontâneas, troca de conhecimentos
e construção de possibilidades de ação. Rolou uma intervenção durante o show de
reggae no Parque, que implicou em problemas com a segurança do local. Para um
encontro que usa o nome “hacklab”, eu senti ausência de hackers, mas isso pode ser
uma condição específica de Belém.
Aproveitei a oportunidade para finalmente dedicarmais tempo ao funcionamento do protótipo de ZASF (18) – subindo uma rede autônoma local onde os presentes podiam compartilhar material.
Também coletei trilhas geográficas comoGPS, e aprendi um pouco sobre manipulação de dados geográficos. Através da ZASF também documentei o encontro (através de uma instalação do hotglue(19) na rede local – que posteriormente eu publiquei na internet (20). Invertendo o quase impronunciável (em português) nome do encontro, acabei chamando-o de “hackworked netlab”, e a brincadeira pegou. Ao fim da etapa Belém, muita energia positiva (apesar do cansaço e da gripe queme atropelou por lá) e promessas de desdobramentos.
Voamos para Santarém tarde da noite de domingo. Fomos recebidos pessoalmente
pelo Marcelo, que nos levou de Kombi até a Casa Puraqué, no bairro do Amparo.
Nos estabelecemos por lá, entre beliches e redes. No dia seguinte, as atividades
já começariam pelamanhã.
Santarém fica no coração da Amazônia, na confluência entre os rios Tapajós e
Amazonas. É um balneário, a “Pérola do Tapajós”, com uma orla turística e lindas
praias como Alter do Chão e Ponta de Pedras. É também uma importante conexão
portuária, que escoa parte da produção do norte e do centro-oeste do Brasil. Fiquei
impressionado emsaber que carne de gado é quase tão barata quanto o peixe, abundante
naquelas águas – decorrência da proximidade com a produção pecuária que
sobe pela rodovia Cuiabá-Santarém. Santarém cresceu rapidamente na última década,
e parte desse crescimento deve ser creditado ao porto da Cargill -multinacional
que produz soja, rações para gado e afins. O coletivo Puraqué é uma potência transformadora na cidade, atuando em diversos projetos ligados a políticas públicas de
tecnologia, mobilização e transformação social.
Otime do Puraqué estava desfalcado de capitão – Jader Gama precisou ir correndo
a Belém para resolver assuntos burocráticos e só voltaria na quarta-feira. Ainda assim,
acordamos na segunda com a casa cheia. Pessoal do Puraqué, da Casa Brasil
Santarém, do Pontão de Cultura, do Projeto Saúde e Alegria, entre outros.
Ao longo dos dias seguintes, trabalhamos algumas questões críticas. Tentamos entender
as forças que influenciam a cidade e o entorno, como o Puraqué está situado
naquele contexto específico, como a cartografia pode ajudar em suas ações atuais e
futuras. Durante o dia, fazíamos experiências – subi mais uma vez a ZASF, desenhei
o mapa do terreno da casa a partir das coordenadas geográficas que coletei caminhando
pelo quintal, projetamos o mapa do Puraqué (21) sobre papel e desenhamos em
cima dele um monte de coisas que não aparecem na base dele: invasões, influência
do porto da Cargill na expansão urbana, conexão com a rodovia, a orla onde vivem
os ricos da cidade, a periferia, os igarapés. Às noites, houve duas programações de cineclube e uma apresentação de carimbó.
Quando Jader voltou, conversamos muito sobre os projetos atuais e planos futuros
deles: a moeda social muiraquitã, o consórcio de compra de computadores, o
projeto jovens codeiros, a intranet de associações comunitárias via wifi, etc. O Puraqué
é um celeiro de ideias e potencialidades, e ali do meio da Amazônia indica
soluções que fazem sentido para o mundo inteiro: populações nativas e mestiças
integrando-se pela internet, relação respeitosa coma floresta, arranjos colaborativos
e dinâmicos de trabalho e produção operados em rede, confiança distribuída. Vale
a pena conferir a pesquisa que a holandesa Ellen Sluis desenvolveu por lá no ano
passado (22). Em especial, o plano de desenvolver um pólo de desenvolvimento de tecnologias livres é algo que me deixa bastante otimista (como possível concretização
do que eu proponho no artigo “Inovação e Tecnologias Livres”) (23).
Voltei para casa com vontade de ter ficado por lá um pouco mais. Todo evento
supõe um deslocamento, uma dimensão em que o tempo corre diferente. Debatemos
profundamente a questão da cartografia como uma ferramenta não somente
para retratar a realidade, mas também para interferir nela, orientar esforços e identificar
caminhos. Além de conhecer gente nova, consegui também trabalhar em questões
que fazem muito sentido parameus planos por aqui (24). Que os mapas críticos se multipliquem!
—
Veja também os relatos de Tati Wells (25) e Paulo Tavares (26), minhas fotos (27) e a documentação que fiz em tempo real (28).
1 http://hacklab.comumlab.org
2 http://hacklab.art.br
3 http://comumlab.org
4 http://baobavoador.noblogs.org
5 http://hackitectura.net/blog/
6 http://www.mara-stream.org/
7 http://twitter.com/#!/brunotarin
8 http://pt.wikipedia.org/wiki/Bruno_Vianna
9 http://www.antenamutante.net/
10 http://puraque.org.br
11 http://twitter.com/#!/etetuba
12 http://arquetipofake.blogspot.com/
13 http://pt.wikipedia.org/wiki/Gr%C3%A3o-Par%C3%A1
14 http://pt.wikipedia.org/wiki/Cabanagem
15 http://casaraocultural.com
16 http://foradoeixo.org.br/
17 http://www.parquedosigarapes.com.br/
18 http://desvio.cc/blog/zasf-com-sotaque-paraense
19 http://hotglue.org
20 http://desvio.cc/sites/desvio.cc/files/hacknet/
21 http://puraque.org.br/mapas
22 http://mutgamb.org/MutSaz/2011/Janxs/Ponte-eterea-Santarem-Holanda
23 http://efeefe.no-ip.org/livro/lpd/inovacao-tecnologias-livres-2
24 http://ubalab.org
25 http://baobavoador.noblogs.org/post/2011/08/17/hacklab-belem/
26 http://hacklab.comumlab.org/wikka.php?wakka=MapaRelatoem10pontos
27 http://www.flickr.com/photos/felipefonseca/collections/72157627356305771/
28 http://desvio.cc/sites/desvio.cc/files/hacknet/
* Este artigo foi escrito com o apoio do Centro Cultural da Espanha em São Paulo.
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Meu relato resumido sobre os dias no Pará, em agosto. Artigo também publicado no site Hipermedula*. Estou costurando uma versão mais detalhada para o blog Ubalab, mas ainda demora um pouco.
Em agosto tive a oportunidade de participar da etapa paraense(1) do Networked
Hacklab (2) – um encontro que reuniu ativistas, artistas, hackers, pesquisadores e afins,
com o objetivo de propor uma cartografia crítica da Amazônia. O evento foi organizado
por Giseli Vasconcelos (3), em um formato dinâmico e produtivo. Foram duas
“imersivas hacklab”, no começo e ao fim de agosto. Estive na primeira. Cada imersiva
estava por sua vez subdividida em dois momentos, desenvolvidos em diferentes
localidades: primeiro em Belém, e depois em Santarém.