A rede MetaReciclagem completou recentemente oito anos de um diálogo aberto e colaborativo sobre apropriação tecnológica. Ainda insistimos em não nos deixar enquadrar nas caixinhas temáticas que tentam nos associar ao mero reuso de computadores com a instalação de software livre e montagem de espaços de inclusão digital. Certamente, isso constitui uma das bases comuns entre os integrantes da rede, e até assumiu ao longo do tempo um caráter ritual, de replicação de metodologias que constroem identidade. Mas nossos horizontes são mais amplos: a desconstrução de tecnologias é um universo abrangente. Aí incluímos computadores e dispositivos enredados, mas também a construção de habitações, a culinária, a tecnologia aplicada ao meio ambiente, assim como os meios de comunicação, as linguagens artísticas, as formas coletivas de organização e existência. Entendemos como tecnologia toda ação ou objeto que embute um propósito a partir de algum método.
O aspecto da desconstrução merece um pouco mais de atenção. O que importa aqui não é tanto seu aspecto objetivo, mas sim o processual - não o ponto a que a desconstrução leva, mas o caminho que percorre. É o proverbial "abrir a caixa preta", questionando aquilo que se apresenta a cada etapa. A abertura supõe antes de mais nada uma sensibilidade do gesto de abrir, uma habilidade relacionada à percepção daquilo que pode ser aberto. Mesmo tratando de caixas pretas simbólicas, buscamos provocar processos evolutivos - como o monolito de 2001 - cuja mera existência teria provocado a curiosidade que nos diferenciou das bestas. É essa curiosidade - um potencial criativo latente - que emerge como traço comum a todos os bandos metarecicleiros. Propomos uma criatividade não mais separada da experiência cotidiana, mas harmonizada com todos os aspectos da vida.
Complementar à gestualidade da abertura é a defesa da circulação livre de informação e conhecimento: as ações de MetaReciclagem usam software livre e buscam caminhos para o desenvolvimento de hardware aberto, promovem o espectro eletromagnético aberto, publicam conteúdo com licenças livres. A rede em si funciona não somente como virtualização das relações, mas como um espaço construído socialmente que estende o potencial das ações locais - em escala proporcional à quantidade de informação que os atores locais publicam e à diversidade dos integrantes da própria rede. Sempre esteve presente na MetaReciclagem a certeza de que é difícil estabelecer limites precisos entre o online e o offline. Essa visão se reflete nas múltiplas identidades que ela assume - compreendendo simultaneamente o relacionamento com comunidades a partir de ações ultralocais e a mais profunda sensação de socialização remota. Isso possibilita um nível elevado de produção colaborativa e enredada: ideias e projetos desenvolvidos através da rede, que podem ser rapidamente replicados em qualquer lugar.
De certa forma, refletir sobre perspectiva da cidade traz para as redes um contraponto que pode ser muito produtivo. A cidade é a experiência imediata de estar em sociedade, uma experiência cuja iminente irrelevância os mais afoitos pregadores das redes digitais quiseram determinar. Segundo eles, a vida na cidade seria cada vez menos necessária, uma vez que não precisaríamos mais conviver com vizinhos desagradáveis. Felizmente, estavam equivocados em sua tentativa de elevar ao extremo o efeito da câmara de eco - em que as pessoas só ouvem opiniões parecidas com suas próprias. Hoje a cidade volta ao foco não como oposto do digital, mas como um cenário que ele pode ampliar e multiplicar, e com isso ampliar e multiplicar a si mesmo. É uma relação certamente complementar.
Nos últimos anos foram desenvolvidos milhares de sistemas, ferramentas e aplicativos, além de instalações artísticas, projetos educacionais e comerciais, que propõem o hibridismo entre as redes e o "mundo lá fora", possibilitando uma infinidade de interfaces físicas para sistemas de informação. Em paralelo, veio também a disseminação do discurso das "cidades digitais". Mesmo que se tenha constituído em grande medida como mais uma expressão da moda para os surfistas de hype, que adotam ideias que soam impactantes sem necessariamente refletir sobre suas consequências, é interessante pensar na expansão de possibilidades enredadas para as cidades.
É possível construir pontes entre as propostas da MetaReciclagem e os projetos de cidades digitais. Podemos começar desconstruindo a própria definição de “digital”. Por exemplo: apesar do suporte digital, grande parte dos usos das novas tecnologias são experiências analógicas - mover um mouse ou tocar na tela, ver uma imagem, escutar música. Chamá-las de digitais só faz deslocar o foco do que é realmente importante: as possibilidades de desintermediação, de colaboração e de autogestão. Até que ponto os projetos de cidades digitais não incorrem no mesmo vício?
Outro aspecto que deve ser considerado em relação a essas tecnologias: acesso não é tudo. Para falar a verdade, acesso não é quase nada. Existem tantas camadas que se sobrepõem ao mero acesso que toda a retórica da inclusão digital precisa ser repensada, ainda mais se colocada em perspectiva histórica. Em levando-se a sério, qualquer iniciativa de inclusão propriamente dita deveria ansiar pela própria irrelevância em alguns anos. Deveria considerar que sua missão terá sido cumprida quando não for mais necessária.
Aquelas experiências de cidades digitais que tratam apenas de oferecer acesso à internet, mesmo sem fio, deixam de lado um grande potencial. Precisam, antes de mais nada, incorporar a convicção de que as tecnologias são políticas, que constroem e transformam imaginários. Não são meros instrumentos cujos usos estão encerrados em maneiras predefinidas de uso. Por isso, tais projetos não podem se submeter à lógica da indústria, que trata as tecnologias somente como oportunidades de expandir e aumentar os lucros dos mercados de "produção cognitiva". É fundamental que se estimulem a experimentação, a reinvenção e a liberdade de usos.
Mas todos esses argumentos (hoje em dia) são quase óbvios. Eu gostaria de ir além. A gente muitas vezes esquece que a ideia contemporânea de cidade não é um absoluto, mas um episódio a mais em um longo processo histórico. Desde os primeiros assentamentos e tribos, passando por aldeias, pela polis grega e cidades-estado, pelo surgimento e queda dos diferentes impérios do ocidente e do oriente, o limite entre civilização e caos romanos, os castelos medievais, os burgos, até a aglomeração que se viu a partir da revolução industrial. Uma transição que fez com que a vida em sociedade gradualmente perdesse a sensação de familiaridade, acompanhada em séculos recentes de projetos urbanísticos e de políticas públicas que ajudaram a forjar a ideia moderna de cidade. Como a conhecemos hoje, a cidade é reflexo de um ideal de sociedade - industrializada, capitalista, baseada na democracia representativa e em religiões monoteístas. Nessa forma idealizada, ela possui algumas características específicas:
Podemos questionar as suposições sobre as quais essa cidade está baseada. O futurólogo alemão Chris Heller, por exemplo, discorda da associação comumente feita entre privacidade e liberdade. Segundo ele, ao tratar a privacidade como absoluto, o dissenso fica esmagado - o que gera sociedades mais moralistas e hipócritas. Heller não é o único a sugerir uma redefinição da privacidade. Especialmente no caso do Brasil, a cidade moderna é uma ideia que foi importada sem muita preocupação com sua adequação às nossas características. Pior ainda, foi distorcida e implementada de maneira equivocada. Se podemos ler a ideia de cidade como uma tecnologia - geralmente desenvolvida de cima para baixo -, podemos também tentar metareciclá-la - desconstruindo suas bases, propondo releituras, apropriações e ressignificações.
O ideal de cidade moderna está cada vez mais distante do que se pode ver cotidianamente nos nossos centros urbanos, talvez mais bem descritos como pós-cidades cyberpunk. Um exemplo claro, talvez extremo, é São Paulo. Vemos redes digitais por toda parte, sabotando as hierarquias da informação - para o bem e para o mal. Uma cidade não mais centralizada, mas fragmentada em diversas frentes. Uma economia distribuída e em grande medida informal. Um dinamismo que responde criativamente à instabilidade. Grandes contraste e mobilidade sociais. Uma sensação constante da iminente irrupção da violência, reforçada pelo alto nível de ilegalidade e impunidade, que refletem uma perda daquele controle que a cidade como estrutura costumava representar. É importante tentar atualizar nosso referencial sobre o que é uma cidade, para entender como podemos atuar para efetivamente transformá-la.
Um dos primeiros rascunhos de ações elaborado dentro do Projeto Metá:Fora foi o Prefeituras Inteligentes, de Daniel Pádua, muito antes de qualquer um de nós ter contato com políticas públicas do mundo real. Propunha basicamente que as cidades fossem vistas como espaços informacionais complexos, e que se desenvolvessem espaços de catalisação do potencial transformador dessa informação a partir de laboratórios ligados em rede com infraestrutura metareciclada. Isso nunca virou um projeto concreto, mas certamente influenciou coisas que a gente desenvolveria nos anos seguintes.
O que é essencial na cidade? Quais são suas estruturas de informação? Ruas, praças, espaços públicos, espaços particulares de uso público, espaços privativos... como se pode interferir para criar relações mais colaborativas, participativas e livres? Como vamos raquear a tecnologia cidade? Como podemos transpor as ações que promovem a transparência de dados para o espaço urbano?
Mesmo com cada vez mais ruído na relação, a cidade continua sendo central na vida contemporânea - pelo acesso a infraestrutura compartilhada (serviços básicos, saneamento, etc.), pela concentração de oportunidades de estudo, trabalho e atividades culturais. Existe também uma certa vertigem que leva à projeção (ou ilusão) de crescimento, enriquecimento, mudança de vida. Mas é fato que cidades menores têm cada vez mais acesso a infraestrutura, e que cada vez mais oportunidades de trabalho poderão ser realizadas à distância. A médio e longo prazos, qual será o efeito disso na concentração urbana?
Até mesmo nos grandes centros, começam a despontar projetos mais focados nos bairros do que na cidade toda - tentando trazer de volta a familiaridade da vizinhança, o compromisso de pessoas que compartilham condições de vida. Um movimento interessante nesse sentido é o das transition towns, que propõe soluções para os desafios das mudanças climáticas a partir da transformação emergente do cotidiano local - bairros, vilarejos, pequenas cidades. Outro projeto interessante é o espanhol Wikiplaza, que propõe entender o espaço público como sistema operacional, e nele promover a circulação de informação.
É necessário refletir sobre o papel que as ações situadas na fronteira entre arte, ciência e tecnologia devem assumir nessa metareciclagem de cidades. Um dos aspectos que investigamos no projeto Rede//Labs é justamente essa conexão entre a experimentação e a cidade. De que forma podemos propor que a exploração das fronteiras abstratas da inovação continue fazendo sentido e realimentando a vida "real"?
É interessante perceber essa mudança acontecendo também nos circuitos experimentais. A edição de junho de 2010 do projeto Interactivos, no Medialab Prado de Madri, reconheceu o movimento de "ciência de garagem", que vem emergindo nos últimos anos, mas propôs uma abordagem mais participativa: ciência de bairro. Os resultados foram muito interessantes: projetos que mesclavam conhecimento científico, perspectiva estética e demandas sociais ou ambientais.
Mesmo em contextos nos quais o urbanismo moderno nunca chegou a se desenvolver plenamente, é útil pensar na metareciclagem da ideia de cidade como ferramenta de construção de imaginário e transformação (talvez pensando em um desurbanismo). Nos últimos tempos, tendo a concordar com John Thackara - podemos fazer muito mais em nossa própria vizinhança do que fora dela. Estou articulando um projeto aqui em Ubatuba, litoral do estado de São Paulo, tentando trazer todas essas questões para um ambiente diferente daqueles em que trabalhei até hoje. Vamos ver no que dá.